A história do território em cinco pratos harmonizados
É possível!
E quem nos fez acreditar foi a siciliana Roberta Capizzi. Aliás, ela nos fez ver, sentir, degustar e comprovar de perto que um restaurante não precisa se resumir a um local em que se come bem.
No caso do Me Cumpari Turiddu, a comida é excelente, para dizer o mínimo, mas não é o elemento principal.
“O valor da comida, na nossa visão, está no valor humano. É isso que faz a diferença. Falar apenas de comida e ponto não faz muito sentido porque não se enxerga a história, a conexão com o território e as tradições. E isso é o belo da comida. Dentro dela há um fator humano fortíssimo, além de um fator cultural“, disse Roberta que apesar de jovem já conta com quase uma década de experiência no setor.
Ela não cozinha, mas é super detalhista e entende letra por letra do que é oferecido no único restaurante de Catânia que figura no Bib Gourmand Michelin. Nada entra para o cardápio ou mesmo para o pequeno armazém que fica na entrada do restaurante, sem passar pelo seu crivo. “Sou ótima degustadora”, brinca ela, que leva o negócio muito a sério.
O Bib Gourmand relaciona os restaurantes que propõe uma experiência gastronômica rica com um menu abaixo de 32 ou 35 euros, nas cidades turísticas e capitais.
Os produtos são super selecionados, no verdadeiro sentido da palavra. Ao cliente, Roberta só oferece o que o território tem de melhor. Não que seja pouco! Mais de 45 produtos tem o selo de Fortaleza Slow Food na Sicília, produtos tradicionais, que tem uma história com o território e, muitas vezes, até risco de extinção.
“Nós fazemos um grande mix da culinária da Sicília, quer seja da cozinha messinese, catanese, ragusana. Nós recolhemos receitas e tradições que depois reinterpretamos ligeiramente na cozinha. Nós temos uma visão “Slow Food” que gosto de definir como pura. Slow Food é comida boa, limpa, justa e sem intermediários, que é exatamente o que fazemos aqui”, explicou a jovem restauranteur, que possui 60 pequenos fornecedores diferentes para gerenciar.
Os produtos de excelência se revezam no menu do Turiddu conforme a estação e vão do famoso pistache siciliano de Bronte ao queijo de cabra girgentana, do presunto de suíno negro às alcaparras de Salina.
Se provamos tudo isso? Sim, tudo isso e muito mais.
Ao lado do sommelier Giovanni La Rosa e do chef Gianluca Leocada, Roberta nos propôs uma viagem pelos sabores da Sicília em 5 pratos, todos acompanhados de vinhos da ilha:
Para começar, o famoso presunto cru di Suino Nero dei Nebrodi.
A Itália é definitivamente a terra da charcutaria. Não esquecemos dos espanhóis, obviamente, cujo jamón ibérico leva o título de melhor presunto cru do mundo. Mas da Espanha teremos tempo para falar. Aqui na Itália, de norte ao sul, a variedade de presuntos de boa qualidade impressiona. Começamos provando o presunto de Saint Marcel feito com as ervas do Vale de Aosta, seguimos experimentando embutidos marinados no vinho e defumados em Martina Franca, tem ainda o famoso presunto de Sant Daniel, mas é no sul que encontramos os produtos feitos com raças praticamente selvagens, em criação extensiva e alimentação não controlada, isto é, completamente natural.
Em Nebrodi, um vasto território entre as províncias de Palermo e Messina, a raça do porco de pêlo escuro foi quase esquecido em razão da baixa produtividade. Em dois anos chega a 100 quilos e mesmo caminhando 30 km ao dia em busca de alimento, a carne é geneticamente cheia de gordura. O que parece ser um problema, na verdade é o seu grande diferencial. O teor de colesterol é menor que o dos porcos brancos das fazendas intensivas.
O presunto cru ou “proppuni” é envelhecido pelo menos 18 meses em salas de pedra natural, a 700 metros de altura. O aroma é penetrante e a cor de um vermelho intenso, quase um bordô, hipnotiza. O sabor doce surpreende. É bem elegante para uma carne de porco criado de forma quase selvagem. A gordura, que derrete com pouca temperatura, dissolve facilmente na boca.
Para garantir que a gordura só irá dissolver na boca do cliente e não da fatiadora, Roberta – com a curadoria de seu pai – encontrou e restaurou uma antiga Berkel, uma fatiadora holandesa da década de 20 que fatia mecânica e lentamente as peças de presunto.
A Berkel surgiu em 1898, quando o açougueiro holandês Wilhelmus Adrianus Van Berkel usou sua experiência para reproduzir mecanicamente o movimento de corte que antes era feito com a faca. Os cortadores “a volante” da Berkel, como aquele utilizado no Me Cumpari Turiddu, evitam o superaquecimento da gordura na carne, já que a velocidade de corte pode ser ajustada com o movimento da mão.
Roberta garante que é possível notar a diferença de sabor um mesmo presunto cortado em uma fatiadora elétrica e numa Berkel. Nós não fizemos o teste, mas podemos garantir que as fatias finas e com a gordura intacta que experimentamos estavam com um sabor único. A prova eram os pequenos grânulos de tirosina formados entre as fatias. Os pequenos pontos brancos de “sal”, que na realidade são aminoácidos, se formam apenas em presuntos de longa maturação (acima de 24 meses).
[Os cristais que se formam nos queijos envelhecidos é chamado de caseína: você lembra?]
A trilogia da berinjela: Caponata, Parmigiana e Schibeci
O antipasto vegetariano composto pelos três pratos mais icônicos de toda Sicília, tem como ingrediente principal a berinjela. E como é versátil! Em cada uma das preparações ela assumiu tamanhos, texturas e gostos diferentes.
A caponata do Me Cumpari Turiddu ganhou abobrinhas, pouco açúcar e uma crosta de pão no empratamento. Os legumes foram cortados em dimensões menores que a caponata siciliana tradicional. O sabor agridoce característico da caponata siciliana estava redondo, sem agressividade.
Segundo a história que nos contou o chef Leocada – e que depois nos recontaram vários outros sicilianos apaixonados por sua culinária, entre chefs e donas de casa na fila do supermercado – é que caponata deriva de capone, uma espécie de peixe que era utilizado na receita original. A escassez de recursos, entretanto, fez com que os mais pobres substituíssem o peixe pelos legumes e então nasce a caponata, a versão modesta do “capone agridoce”.
A história da caponata é um retrato importante do lugar. A trajetória da maioria das receitas partem de uma versão bem popular e vai sendo incrementada ao longo dos anos, conforme cresce o poder aquisitivo das pessoas. A caponata vai no contrafluxo, já que o prato é difundido e consolidado a partir do momento que é adaptado de uma versão mais nobre. É possível que esse caminho feito pela caponata “de cima para baixo” – que é semelhante à história dos doces típicos sicilianos que ainda vamos falar por aqui – tenha sido resultado das inúmeras invasões do território. A Sicília serviu de morada para muita família real e para a nobreza de vários povos enquanto dominaram a ilha. A cozinha da realeza serviu de inspiração para a cozinha popular e, a partir daí, ganhou o mundo.
O parmigiana, outro prato da Sicília famoso no mundo todo, ainda que em alguns países a receita não tenha nada a ver com o protótipo (como no Brasil), veio bem clássica: berinjela, polpa de tomate e queijo ragusano ralado grosseiramente. A história do parmigiana quem nos contou foi o sommelier Giovanni. Ao menos uma das versões, já que por aí encontramos bem mais de uma. Segundo ele, antigamente as berinjelas eram secadas ao sol, penduradas nas sacadas em um estrado de madeira que se chamava parmigiana e é daí que o prato foi batizado. Nada a ver, portanto, com Parma, com queijo parmesão, muito menos com carne empanada e gratinada como fazemos no Brasil.
O queijo ragusano é um dos mais antigos tipos de queijo produzido na Sicília, feito de pasta filada de leite bovino, sempre cru. O nome advém da zona de produção, ou seja, de Ragusa.
Já o schibeci,o último antipasto da trilogia, é a versão da caponata da região de Messina. Aqui é a batata e o pimentão que fazem companhia para a berinjela. Os condimentos puxam para um sabor um pouco mais ácido, que acabou equilibrando bem com o Nero d´Ávola Turi. “É um vinho de notas doces, produzido por Salvatore Marino, um pequeno produtor da região de Pachino”, explicou La Rosa enquanto despejava o vinho na taça.
Depois dessa entrada a base de berinjelas, eu pensei que poderia muito bem me tornar vegetariana. Sem arrependimentos.
Mas aí provamos o Spaghetti alla Turiddu…
…e rendi graças por não ter tomado essa decisão antes de experimentar a massa com molho a base de masculina de magghia, olive minute, alho, tomate cereja, alcaparras de Salina e miolo de pão gratinado.
“A ideia do prato nasce da síntese de duas receitas sicilianas muito famosas, que são a pasta alla catanese e a pasta alla eoliana. Nós juntamos os elementos das duas: da eoliana pegamos a alcaparra de Salina, que é uma Fortaleza Slow Food; já da receita da preparação catanese pegamos dois ingredientes, a mollica aturrada, que é o miolo de pão amanhecido tostado e a masculina da magghia, o aliche pescado com uma rede de trama bem fina, que é também uma Fortaleza Slow Food”, contou-nos Roberta, cheia de entusiasmo e orgulho.
E não é para menos. Foi o spaghetti alla Turiddu que fez o restaurante entrar para o Guia Michelin e eu só fui entender o porquê depois da primeira garfada. É que a preparação foi tão rápida que, até esse momento, confesso, não gerava grandes expectativas.
Mas isso foi comigo, que acabei pegando só a parte da “mantecatura” da massa, já no finalzinho do preparo na cozinha. Enquanto Vinicius acompanhava o preparo da receita, eu me encarregava de trocar as baterias da câmera e colocá-las para recarregar. Nesse meio tempo, boom, a pasta ficou pronta. E tudo, repito, tudo, foi feito na hora.
A prova cabal está registrada em vídeo em nosso Canal do YouTube !
Eu que já assisti e saboreei o prato – e hoje me pergunto quando iremos prová-lo outra vez – te conto aqui, em primeira mão, as etapas da preparação. Na prática, o chef Gianluca jogou azeite de oliva na frigideira e quando quente, acrescentou um dente de alho com a casca e tudo para perfumar o prato. Em seguida ele acrescentou azeitonas verdes picadas, alcaparras e tomates daterinos bem doces cortados ao meio. De tempos em tempos, o chef acrescentou água de cozimento da massa na mistura, o suficiente para deixá-la sempre hidratada. Depois foram para a panela os pequenos aliches de “malha” e um pouquinho de pimenta. O spaghetti é, então, acrescentada à salsa logo depois que o alho – ainda inteiro – foi retirado da mistura. Por mais dois minutos, a massa terminou o cozimento já meio aos vegetais e ao peixe, durante a mantecatura.
Foi exatamente nessa fase que eu retornei à cozinha. “Que perfume boníssimo!”, exclamei espontaneamente assim que os aromas da preparação entraram em contato com o meu olfato.
O chef abre um sorriso e proclama: “Revelo um segredo: na cozinha é importante usar todos os sentidos, tanto o comensal, como o garçom e, claro, o cozinheiro. Uma ótima pasta libera um ótimo perfume. Quando sentimos que a preparação exala um cheiro bom, significa que é equilibrada de sal”, ensinou Gianluca, enquanto realizava a mantecatura.
O segredo que ele não contou, mas que ficou mais que evidente quando provamos o prato, é que ali havia a melhor seleção do que a Sicília poderia nos oferecer em termos de ingredientes. Tudo tinha um sabor fenomenal e juntos, na quantidade certa, mantiveram um equilíbrio perfeito.
Parou por aí?
Por último, Roberta nos fez viajar pelos sabores de Messina, com um Pesce Spada alla “Ghiotta”, um prato que leva peixe espada, alcaparras, tomates, salsão e azeitonas. Para acompanhar, tomamos um rosê Benanti, da região do vulcão Etna, um vinho fresco, com um leve tanino que Vinicius se apaixonou de cara e não parava de dizer que cheirava a mel.
E cheirava mesmo!
Acabou que, mais uma vez, nos surpreendemos com os sabores capazes de esconder um prato feito com menos de cinco ingredientes. De acordo com Leocada, o peixe é preparado no óleo, “sofrito” na frigideira e depois ganha acompanhamento de um molho de tomate espesso e muito, muito saboroso.
Que tal provar uns queijos sicilianos?!
Antes que a sobremesa chegasse à mesa, o chef nos trouxe uma seleção de queijos de cabra, acompanhados de geleia de tangerina e de mel de abelha. O prato, que pode ser ordenado também no início da refeição, veio muitíssimo bem, obrigada, como final feliz da nossa viagem pelos sabores da Sicília.
Num só prato, Roberta nos contou a história de cinco produtores de queijos de cabra Girgentana, uma espécie cuja chegada à Sicília remonta à invasão árabe, ou seja, por volta de 800 d.C.
Segundo informações do Slow Food, nos anos 20 e 30, os criadores passavam de casa em casa, vendendo o leite diretamente, ordenhando as cabras de porta em porta. Com a introdução de padrões higiênicos rigorosos e a expansão do consumo de leite tratado termicamente, com o sistema UHT ou pasteurizado, houve uma drástica redução no número de animais criados: de 30.000 na década de 1950 para pouco mais que os atuais 500.
As cinco versões eram bem diferentes, uma melhor com a outra: envolto em açafrão, em cebolinha, na versão taleggio cremoso, aromatizado com folhas e sementes de abobrinha longa e, por último, um queijo semi-maturado. Tudo isso coberto por um delicioso mel cristalizado de abelhas negras da Sicília (espécie autóctone, ameaçada) e de marmelada orgânica de clementina “da casa”.
“A receita da marmelada segue a tradição. Recuperamos a receita da marmelada que era feita na casa de nossas nonnas”, disse Roberta que explicou, ainda, que a fruta é cortada sem tirar a casca e como adensante é usado apenas suco de limão.
O resultado é espetacular. A sensação era de estar comendo cascas de tangerina cristalizadas, docinhas, sem qualquer traço de amargor.
E só nesse prato, acompanhado de um vinho Passito di Pantelleria Bukkuram, já teríamos dado nossas ganas de comer doce por saciada.
Mas Roberta é perfeccionista e a o enlace final foi com um belo cuscuz doce, uma releitura de uma antiga receita do Convento di Santo Spirito, que fica em Agrigento, Sicília. A sobremesa é um amalgamado de pistache e amêndoas trituradas, chocolate com frutas cristalizadas, com creme de baunilha, canela e morangos. Não provamos o doce original, mas temos certeza que as freiras do convento aprovariam felizes a reinvenção.
“Nós provamos a versão original no Convento Santo Spirito, que fica na cidade de Agrigento. E é um doce das freiras que viviam em clausura. A receita é secreta, nós apenas a provamos e a reelaboramos. Esse é um modo de revisitar a cozinha, partimos da tradição, acrescentamos algum elemento e continuamos a contar a história do território”, finalizou a jovem inspiradora empresária.
Nosso agradecimento carinhoso à Roberta Capizzi por ter aberto as portas ao nosso projeto e à toda equipe do Me Cumpari Turiddu por compartilharem seu conhecimento gastronômico conosco.
[su_box title=”Me Cumpari Turiddu | Il Ristrô Siciliano”]
Piazza Turi Ferro n. 36, 37, 38
Catania, Sicília, Itália
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www.mecumparituriddu.it
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