Quais os ingredientes e quais as preparações identificam a culinária costa leste da ilha
Depois de conhecermos a gastronomia de Messina e Catânia, atravessamos a Sicília para conhecer a culinária do lado ocidental da ilha. Se do lado leste, a Sicília teve forte presença dos gregos, no lado oeste, foram os fenícios e árabes que predominantemente deixaram o seu legado.
Com raízes culturais diferentes, a gastronomia se manifesta, ainda hoje, de modo diverso nos dois extremos da ilha. Não se trata, entretanto, de uma culinária completamente oposta, uma negação uma da outra, já que alguns ingredientes transitam livremente em todas as províncias. Atum, peixe-espada, butarga, berinjela, tomate, amêndoas e pistache – sem mencionar a massa de grano duro – fazem parte da gastronomia de toda a Sicília.
O mesmo acontece com algumas preparações, como a caponata e o parmigiana que é impossível saber qual a origem com exatidão. Esses pratos estão por toda a ilha e é possível encontrar tantas variações quanto o número de sicilianas da província.
“Cada dona de casa tem a sua própria receita de caponata”, nos contou Rosaria Napoli, a chef do Caupona Taverna di Sicilia, que ao lado do marido Claudio Carbonari, nos guiou pelos sabores de Trapani.
Localizado no centro histórico da capital da Província, o pequeno restaurante possui um cardápio voltado à comida do território e esse tem muita história para contar!
A cidade portuária de Trapani está equidistante dos estreitos de Gibraltar e o Canal de Suez. A posição geografia privilegiada fez com que a região fosse tomada ao longo dos séculos por fenícios, gregos, cartagineses, romanos, árabes e normandos. Como ponto de chegada e partida, a costa oeste acabou sendo a porta de entrada para as mercadorias que chegavam à Sicília, de todas as partes do mundo todo.
“É por isso que a nossa cozinha é rica. Porque cada um desses povos deixou uma pequena contribuição e nós soubemos como combiná-las de maneira frutuosa”, contou Claudio, que comanda o salão do restaurante e faz questão de explicar a origem dos ingredientes e a história dos pratos a cada um dos clientes.
Hoje, a culinária da Sicília não vive mais do escambo (ou baratto como dizem os italianos), mas dos vegetais e animais domesticados que os navegadores para cá trouxeram e que se adaptaram bem ao clima seco, ao território vulcânico e as temperaturas acima da média do resto da Itália. Foi assim com o tomate vindo da América, com a berinjela vinda da Ásia e com a amêndoa e o pistache do Oriente Médio. Esses ingredientes, somados à riqueza de espécies que habitam o mar mediterrâneo, à atividade pastoreira, às alcaparras nativas e ao azeite de oliva, resumem o que hoje conhecemos como a essência da culinária Siciliana.
Olhando com mais calma para a Província de Trapani, porém, encontramos um ingrediente que destoa um pouco dessa história.
Cuscuz: de onde veio, para onde foi?
O cuscuz é uma preparação feita com a sêmola de cereais, principalmente o trigo, quando a sêmola é misturada à água até que se formem pequenos grãos a serem cozidos em uma cuscuzeira.
A cuscuzeira é uma panela específica para fazer o cuscuz. Ela é furada no fundo para que possa passar o vapor da água. Na Sicília a cuscuzeira é geralmente feita de barro e depois esmaltada.
No mundo todo sabe-se que a origem do prato é norte-africana. [Quem nunca ouviu falar do famoso cuscuz marroquino?] Segundo a lógica da história, ou foram os próprios cartaginenses que trouxeram o prato à costa oeste da Sicília ou o cuscuz chegou à ilha por intermédio dos árabes. Os italianos, entretanto, sempre muito espirituosos, tem outra teoria:
“O cuscuz é uma preparação típica de Trapani, não sendo encontrada em outras regiões da Sicília. Se tivessem sido os africanos que tivessem trazido o cuscuz para cá, deveríamos encontrá-lo em toda a Sicília, como acontece com outros pratos, mas isso não acontece. Encontramos o cuscuz só em Trapani e por isso existe essa teoria de que fomos nós que levamos o cuscuz até a África”, contou-nos Rosi.
Vejamos o que os africanos dirão dessa teria quando pisarmos em Marrocos!
Seja qual for o caminho percorrido pelo cuscuz , em Trapani ele faz parte da cultura gastronômica há um bocado de tempo. A versão mais tradicional do cuscuz trapanese é bem simples e vem temperada com caldo de peixe, “especialmente feito com vopa, um peixe que tem uma carne mais gordurosa”, ensinou Claudio. “Era assim que o cuscuz era feito antigamente, sem acrescentar crustáceos e outros frutos do mar. O cuscuz era simples, um prato pobre, popular”, acrescentou ele.
Na Taverna, o prato ainda segue o ritual de preparação de antigamente: nada de fornos combinados na cozinha de Rosi. Tudo segue a tradição, sendo feito rigorosamente à mão.
O preparo, que leva ao menos um período do dia, inicia com a fase de hidratação do grão, que requer a junção de água, sal e azeite em pequenas colheradas. O grão é mexido sutilmente com as mãos até o ponto em que os dedos dizem para a cozinheira que o cuscuz está bem úmido. Nesse momento o grão é deixando em uma bandeja repousando por vinte minutos para que absorva bem a água.
Na etapa seguinte, o cuscuz é temperado. Ele ganha azeite de oliva, alho e cebola picados, canela, pimenta seca, sal e amêndoas tostadas. Antes da mistura ser despejada, o fundo da cuscuzeira é coberta com folhas de louro.
Finalmente o cuscuz vai para o fogo, onde cozinha no vapor, lentamente, por cerca de duas horas.
Na hora de servir, sempre como um primeiro prato, o cuscuz de Rosi ganha pequenos pedaços de peixe por cima e a companhia indispensável de um rico e saboroso caldo de peixes (9€).
O caldo, chamado de Ghiotta, é geralmente feito com vários tipos de peixes e leva alho, óleo, cebola, salsinha e tomate.
Na boca, nossa surpresa foi sentir a mistura entre o sabor da canela e do peixe. Uma combinação inimaginável na culinária brasileira e que funciona muito bem!
As massas de Trapani: Cassatelli e Busiate alla trapanese
Ainda na cozinha, Rosi e a equipe da Taverna nos mostraram mais uma preparação que não poderia faltar em uma investigação pelos sabores de Trapani. Estamos falando da Busiate alla trapanese, uma massa fresca, feita com a ajuda do “buso”, o caule de uma gramínea que cresce naturalmente no Mediterrâneo.
[Na Calábria e na Puglia, as massas eram feitas com a ajuda do ferreto, lembram?]
Enrolada no utensílio curioso, a massa feita apenas de grano duro, água e sal, ganha formato espiral. Para acompanhá-la, a chef preparou o típico pesto trapanese, feito com tomates pequenos, amêndoas, manjericão, alho, sal e azeite de oliva extravirgem. Tudo isso foi amassado em um pilão e usado assim, cru, sem passar pelo fogo. O molho feito na hora foi misturado à massa quente, sempre al dente. O pesto fica com um gosto formidável, fresco, vivo, de comida boa e saudável (9€).
Na hora de ir para a mesa, a busiate é servida tradicionalmente com queijo pecorino ralado que eu, Dani, até esqueci de acrescentar. A massa por si só estava tão boa que nem senti falta de queijo algum. Decididamente, viramos fãs da busiate alla trapanese!
Claudio nos explicou que o alho usado na cozinha do Caupona é o alho rosso di Nubia, cidade vizinha à capital da província, considerado um dos melhores alhos do mundo por conta das suas propriedades organolépticas. Segundo estudos, o alho de Nubia possui uma concentração maior de alicina que os outros alhos, o que lhe confere um sabor mais intenso, além de maiores benefícios medicinais.
Ainda falando em massa, foi aqui no restaurante de Rosi e Claudio que vimos a mais bonita massa recheada italiana. O cassatelli, também chamado de espiga, é feito à mão, formando um desenho muito delicado na parte superior da massa.
Como recheio, o cassatelli ganha ricota salgada e temperada com pimenta preta e salsinha. A surpresa fica por conta do acompanhamento. A massa é servida em caldo de peixe com amêndoas e mais uma vez ficamos boquiabertos com a combinação de ingredientes na Sicília.
Quando passaria pela cabeça de alguém misturar ricota de ovelha com peixe?
Antes de provarmos, provavelmente não arriscaríamos combinar sabores tão diferentes. Depois de provarmos, não vemos a hora de poder reproduzir a receita em casa… em alguma oportunidade.
Falemos um pouco mais de Território
Com uma proposta de valorizar os ingredientes do território trapanese, a Caupona Taverna di Sicilia sugere algumas receitas antigas no cardápio fixo (bem enxuto e que clientes assíduos não deixam trocar) e outras no menu do dia, criado de acordo com os ingredientes encontrados na ocasião. Em nosso almoço pelos sabores da Sicília ocidental proposto por Rosi, provamos uma sequência de pratos feitos com ingredientes representativos da região.
Como antipasto, fomos de Monsu, onde a chef reúne vários tipos de entradinhas típicas, conforme a disponibilidade (20€ para duas pessoas). Nós nos acabamos com o queijo pecorino maturado DOP, a linguiça pasqualora feita à mão e o queijo de ovelha de massa filada, grelhado e servido com mel delicioso de Sulla.
A linguiça pasqualora tem esse nome porque era feita durante a Semana Santa e já era conhecida na antiguidade romana. Feita apenas de carne de porco cortada grosseiramente, a linguiça pasqualora é condimentada com sal, pimenta, vinho branco e sementes de funcho selvagem.
Já o queijo Vastedda del Belìce DOP, feito de leite de ovelha e com massa filada, é um dos poucos representantes do gênero, ao menos na Itália.
Seguimos com uma das especialidades da casa, as porpetas fritas. E como estavam boas! A primeira, chamada de polpeta nera, era feita de Sepia com amêndoas. Bem cremosa, era possível comer uma dúzia delas! A segunda – a polpeta rossa – era feita com sardinha estufada alla pratanese: primeiro frita e depois cozinhada em um denso e doce molho de tomate.
Ainda como entrada – e já sabemos que as entradas nunca acabam na Itália – Cláudio trouxe mosciame, uma bresaola de atum com panella. Trocando em miúdos: atum salgado e seco com “polenta” de grão de bico frita. Difícil imaginar? Vamos com mais calma.
A bresaola é feita da parte magra do atum que é seca, salgada e maturada por certo tempo, exatamente como os nordestinos brasileiros fazem com a carne. Um método que garantia a presença de atum na mesa do trapanese durante todo o ano. Já a panella é uma preparação com farinha de grão de bico típica da região vizinha de Nápole, mas que tem parentes espalhados também no Piemonte. Lá chamam de Panizza e é servida fria. Aqui é a panella e a farinha de grão de bico é primeiro cozida e depois frita: fortuna de quem tem azeite de oliva à disposição.
Ainda da necessidade de conservar o alimento, os trapaneses – assim como venezianos e caribenhos – utilizavam a técnica de marinar o ingrediente em vinagre. Na Sicília, marinavam em vinagre, açúcar, azeite de oliva e muita cebola. Foi assim que Rosária preparou o saborosíssimo atum marinado que provamos na Taverna. Primeiro o peixe é frito em óleo de oliva. Em uma panela separada, a cebola é preparada com aceto e açúcar. Depois tudo vem unido com azeite e se deixa repousar “o quanto possível” em geladeira. O prato que tem sabor agridoce, é servido frio e é uma ótima pedida para dias quentes.
Para finalizar, sempre é bom deixar um espacinho para o doce, que na Itália é sagrado. Acompanhados de um Malvasia delle Lipari DOC, um vinho Passito 2016 produzido em Messina e de um Vinho de Marsala Vecchio Samperi Perpetuo -, provamos o cassatelli de ricota com açúcar. O nome é o mesmo da massa salgada, mas ela ganha algumas modificações. Sai o ovo e o grano duro e entra vinho branco e farinha tipo 0. No recheio, a ricota perde o sal, a pimenta e a salsinha e ganha açúcar e gotas de chocolate. É praticamente uma versão de canolli de Trapani, com a diferença essencial de que no cassatelli o recheio é frito junto com a massa.
O vinho Marsala Vecchio Samperi é produzido no método perpétuo (ou solera) onde um pequeno percentual de vinho recém-produzido é acrescido ao vinho já envelhecido, resultando numa criação de um gosto sempre único e inimitável.
Preciso dizer que estava bom?
Aos sicilianos coube a sabedoria de unir – de forma genial – os sabores que aportaram a sua terra. A Claudio e Rosi, coube a sabedoria de manter as receitas tradicionais e tutelar os ingredientes preciosos dessa terra. A nós, apaixonados pela cultura gastronômica, cabe apenas agradecer o curso da história e reverenciar os sabores da Sicília.
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Via S. Francesco D’Assisi, 32, 91100 Trapani, Sicília, Itália
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Matéria maravilhosa! vou experimentar, com certeza!