Ozkar Messner além da cozinha do restaurante Pitzock
Wilman Andrés Mejía, em Angochagua , Equador; Patrícia Miranda Allen em Vulcán, Panamá; Alexandro Yeverino em Dolores Hidalgo, México e agora Ozkar Messner em Val di Funes, Alto-Ádige, Itália.
As histórias de vida desses quatro chefs de cozinha não se cruzam, ao menos até onde sei ou até hoje, quando escrevo essas palavras. Mas se um dia pudessem se sentar em uma mesma mesa, tenho certeza que seria um encontro fenomenal. E não é dos pratos que os chefs formidavelmente preparam que eu me refiro.
Cada um vive uma realidade econômica, geográfica, climática, cultural completamente diversa dos demais, mas todos eles possuem algo em comum de muito valioso: poder transformador.
Cada um – a sua maneira e dentro das suas possibilidades – promove pequenas ou grandes ações capazes de modificar a realidade de todo um grupo de pessoas, sejam indígenas, sejam mulheres, sejam campesinos.
Leia as história de Willman, Patrícia e Alexandro.
No caso de Ozkar, nosso protagonista de hoje, sinto-me a vontade de dizer que a sua iniciativa transformou e vem transformando a realidade de uma cidade inteira. Um dia foi pouco para ver tudo o que ele realiza no pequeno Val di Funes, mas foi suficiente para sabermos que Ozkar não se trata de um chef que vive exclusivamente para o seu restaurante. Seu olhar vai muito além da própria cozinha.
Nosso compromisso com Ozkar estava marcado para terça-feira, nove da manhã. Pitzock – o restaurante que faz referência ao nome da região (Pitzak) em dialeto – já estava aberto. A tradição de servir café, uma taça de vinho ou outro aperitivo no balcão no meio da manhã ou da tarde ainda pode ser visto…herança da época em que o lugar abrigava um bar.
Foi enquanto bebemos um expresso que o chef nos contou do seu projeto com as ovelhas dos olhos negros e dos planos de nos levar a conhecê-las.
Embarcamos em seu furgão e guiando pelas estradas de beleza encantadora do Alto Ádige, Ozkar nos contou uma passagem que mudaria muita coisa na pequena Val di Funes:
Um dia chegou um campesino ao meu restaurante, pediu uma taça de vinho tinto e me perguntou: ‘não te serve uma ovelha?’
Eu pensei e acabei dizendo, ‘traga!’ Mas passou uma semana e nada da ovelha.
Um dia encontrei por acaso o cidadão e o questionei: ‘onde está a minha ovelha?’
Uma semana depois, ele entra pela porta do meu restaurante e diz: ‘trouxe o teu cordeiro!’. Saí do restaurante e estava lá a ovelha, dentro de um Fiat Panda.
Fiat Panda corresponde ao nosso antigo Fiat Uno.
Era algo simpático, engraçado, mas Ozkar sabia que não podia comprar uma ovelha viva sempre que quisesse incluir preparações com a sua carne no cardápio do restaurante. Nessa hora percebeu que era necessário adequar os processos de abate, de transporte, enfim, de comercialização da carne da ovelha. Foi aí que ele e dois amigos abriram uma empresa chamada Furchetta, voltada à valorização dessa raça de ovino conhecida pelo nome de Villnösser Brillenshaf, a mais antiga de Funes.
Há doze anos, os poucos criadores o faziam para consumo próprio, já que o trabalho não era reconhecido, nem recompensado. Havia cada vez menos ovelhas e existia o perigo de a raça desaparecer no território, explicou-nos o chef.
A forma de garantir o retorno da tradição da criação da ovelha dos olhos negros passava necessariamente pela valorização econômica da atividade. Sem um retorno financeiro, o jovem campesino não veria razão em despender tempo e recurso criando a antiga raça Villnösser Brillenshaf.
Ozkar e seus sócios comprometeram-se, então, a pagar um preço fixo pelos insumos do animal – durante todo o ano – e de comprar toda a produção dos campesinos. A proposta, mantida desde então, dá segurança aos criadores de que os custos com a criação da ovelha serão cobertos.
“Quando começamos o projeto com as ovelhas dos olhos negros, havíamos cerca de 250/ 300 ovelhas fêmeas e 10 pequenos criadores. Hoje temos 700 ovelhas no Vale de Funes e já somos 50 produtores”, diz Ozkar, com orgulho.
“O nosso objetivo é manter a tradição, mas a nossa missão é de fazer uma ligação entre a tradição e a inovação e é por isso que os nossos produtos possuem um ponto inovativo”, ressalva o chef que vê na inovação o diferencial que permitirá a continuação do legado. “Quando começamos a fazer presunto cozido de ovelha há doze anos, esse produto não existia no mercado”, exemplifica Ozkar.
A carne | O restaurante
O presunto cozido pioneiro de Ozkar pode ser provado no Pitzock, o restaurante que fica bem no centro de Funes. Nessa época do ano, a iguaria da ovelha vem acompanhada do legume da estação: aspargos!
Mas a criatividade do chef não parou no tempo.
“Eu trabalho com o maior prazer com esses pequenos produtores, com os produtos feitos por eles. Além de um prazer é também um grande desafio para mim na cozinha.”, diz Ozkar que propositalmente deixa de fora do cardápio o Carré, a parte da ovelha mais apreciada na cozinha internacional.
A razão é simples e evidente: o animal como um todo deve ser valorizado. Por isso Ozkar propõe pratos que fariam muitos olharem o menu com cara feia. Um preconceito – garantimos – que desaparece na primeira garfada!
Entre os pratos que provamos, preparados com canela, pulmão e coração de ovelha e, ainda, com tripa e língua de boi da raça Geisslerrind, nós elegemos mesmo é a mão talentosa do chef. Tudo estava absolutamente delicioso!
A salada de língua com lentilhas e legumes (12,50€) nos lembrou da preparação feita no Brasil com ervilhas, mas aqui ela vem fria e é servida como entrada ou primeiro prato. Além de cenouras, o prato ganhou folhas de dente de leão que nessa época deixam os pastos do Alto Ádige tomados de florzinhas amarelas.
Já a receita de Beuschel (9€) – uma espécie de caldo feito com o pulmão e coração da ovelha dos olhos negros – já é bem típica da culinária austríaca e é uma inspiração de um preparo feito pela nonna de Ozkar. Depois de cozidos os miúdos, limão e vinagre de maçã são agregados à preparação, deixando uma acidez levemente acentuada que ficou perfeito com a espuma de batatas.
Como sabemos desse detalhe?
Ozkar faz questão de levar o prato à mesa e explicar não só como são feitos, mas principalmente a origem do alimento e toda a história que há por trás do que os seus clientes irão degustar. É mais uma forma que o chef encontrou de promover os ingredientes e as tradições que ele tanto batalha para manter.
Para quem não come carne, o restaurante também possui opções, mas a atenção de Ozkar está sempre voltada para algum ingrediente especial, que identifica um território, que traz valor a alguma comunidade. O arroz do risoto que acompanhou a canela da ovelha, por exemplo, é o arroz de Vialone Nano, uma espécie peculiar – muito sensível aos fatores ambientais – cuja produção sobrevive com muito esforço, há mais de 400 anos, na província de Verona.
A lã
“Ovelhas são muito mais fáceis de criar do que vacas”, nos explicava Bernhard Profanter, enquanto as ovelhinhas baliam ao fundo. E essa foi a uma das razões pelas quais o jovem produtor foi um dos primeiros a trocar as vacas leiteiras pelas escassas ovelhas quando Ozkar iniciou o projeto.
O trabalho com as vacas é bastante cansativo, porque exige acordar bem cedo e os horários são rígidos. Elas têm horário para comer e para fazer a ordenha. Já as ovelhas comem em qualquer horário e ficam fora do estábulo praticamente todo o ano, com exceção do inverno, que é bem rigoroso.
O fomento da criação de ovelhas resgatou, por fim, não só uma tradição, mas permitiu aos campesinos terem uma vida mais tranquila e, inclusive, conjugar seus afazeres no campo com trabalhos externos. Mesmo mantendo 65 ovelhas, agora Bernhard encontra tempo livre “para andar na montanha”, contou-nos, com sorriso no rosto.
O projeto andava bem, os campesinos estavam felizes, mas há alguns anos uma questão importante ainda incomodava Ozkar: a lã, de excelente qualidade, era completamente descartada.
A raça de ovelha dos olhos negros, explicou ele, é resultado de um cruzamento de uma raça de ovelha bergamasca e outra padovana. “É a melhor raça para a lã de todas as raças alpinas, entretanto, hoje a lã não tem mais valor.”
Há alguns anos, antes que o projeto começasse a se dedicar também à destinação da lã, os campesinos precisavam pagar para uma empresa eliminá-la. “Chegamos ao ponto em que estávamos jogando fora uma matéria-prima que um tempo atrás era muito preciosa, estávamos jogando fora uma grande tradição da nossa cultura”, disse o chef.
Hoje, em parceria com Naturwoll – uma empresa familiar centenária que elabora a lã -, e graças a grandes parceiros, toda a lã proveniente das ovelhas dos pequenos produtores de Val di Funes é vendida. Na Naturwoll, a comando de Valentin Niederwolfsgruber, máquinas de 150 anos tecem a lã e formam fios que viram lindos casacos, gorros, meias e outros inúmeros artefatos de decoração.
Mais uma grande vitória do projeto.
Porém, os desafios não acabaram.
Ozkar nos contou que a empresa responsável por lavar a lã – uma das poucas que ainda restavam – acaba de fechar as portas. A solução momentânea é levar a lã para ser lavada no Egito! Um gasto de energia que eleva ainda mais o custo do produto e dificulta a manutenção do trabalho artesanal feito no Vale di Funes.
Pois é! Ozkar e os pequenos produtores tem um novo desafio pela frente! Temos certeza, contudo, que, juntos, com o amor pela tradição e o olhar na inovação, encontrarão a resposta que buscam para vencer mais esse obstáculo.
[su_box title=”Restaurante Pitzock” box_color=”#e5e6e4″ title_color=”#090a09″ class=”Pasticceria Cagna”] Pizack, 30, Villnöb, Funez
Bolzano, Itália
www.pitzock.com
[/su_box]
[su_box title=”Naturwoll” box_color=”#e5e6e4″ title_color=”#090a09″ class=”Pasticceria Cagna”] Pardell, 41, Villnöb, Funes
www.maturwoll-shop.com
[/su_box]