Fomos conhecer a produção do queijo magro do Süd Tirol e descobrimos uma região de paisagens e pessoas encantadoras
Nós já havíamos passado rapidamente pelo Süd Tirol meses antes e sabíamos que estávamos a caminho de um lugar espetacular. O clima é de tranquilidade, o ar é puro e as montanhas com bosques já verdinhos, mas com o topo ainda coberto de neve, davam a impressão de que a qualquer momento poderíamos encontrar chapeuzinho vermelho saltitando, carregando sua cestinha com meia dúzia de Graukäses.
Pois é, apesar da semelhança dos bosques, a nossa história é um pouco diferente da original, e quem nos contou em detalhes foi Martin Pircher, nascido e criado na região de Campo Tures, a menos de 20 km da Áustria.
A história de hoje começa assim:
Era uma vez o leite desnatado que sobrava da fabricação da manteiga. Há muito tempo atrás, quando o campo era a principal fonte de renda dos moradores da região, o leite ordenhado das vaquinhas tinha uma destinação certa: virar manteiga. Era assim que o leite vinha conservado na época em que a palavra geladeira nem constava no dicionário.
Aquelas pequenas barras de nata batida eram preciosas. A manteiga era uma das principais fontes de energia do homem do campo que precisava enfrentar o frio rígido e o trabalho nas montanhas. Por isso, dos derivados do leite, a manteiga era a que tinha maior valor.
Já o leite desnatado que sobrava da fabricação da manteiga era inicialmente descartado, porque logo ficava ácido. Para não jogar fora a proteína coagulada – outra fonte rica de nutrientes -, as pessoas passaram a usar calor e sal para conservá-la e acabaram transformando o leite desnatado em um queijo de sabor e aroma bem peculiares.
Nascia, assim, o Graukäse, o queijo feito apenas com adição de sal e que poderia ser conservado para os meses de inverno.
O nome Graukäse
Ao pé da letra, grau, em alemão, quer dizer cinza. Algumas fontes citam a cor acinzentada do mofo presente no queijo como razão para o seu nome, mas Martin fez questão de lembrar que grau também é dito para as coisas simples, normais, não refinadas. E, como subproduto da manteiga preciosa de uma época, o queijo acabou ficando conhecido como o queijo simples, modesto, ordinário…um Graukäse.
A produção do Graukäse: o queijo com menos de 2% de gordura
Tivemos a oportunidade de conhecer três produtores do queijo Graukäse, todos com processos de fabricação semelhante, com diferenças sutis, mas essenciais. É que cada produtor tem a sua própria receita, cuja versão original foi concebida anos atrás por algum integrante distante da árvore genealógica.
“A receita era passada do pai ao filho ou da mãe à filha, porque os homens faziam o queijo em malga, e as mulheres, no maso. Uma mesma família podia ter, por essa razão, duas receitas diferentes”, contou-nos nosso cicerone pelo Valle Aurina que tem na fala o respeito e a admiração pela tradição e pelas pessoas que a levam a diante.
No Trentino Alto Adige existem casas características que são chamadas de Maso e Malga.
Maso é uma pequena fazenda onde fica a casa, o estábulo e o celeiro.
Já a Malga é uma casa localizada nas áreas mais altas das montanhas, sendo habitada apenas no verão.
Nossa visita iniciou por um “grande laticínio”, como se referiu Martin.
Moarhof é a empresa de Claudia e Roland Eder, esposa e marido que investiram na compra de equipamentos que permitem fabricar manteiga e Graukäse em quantidades, digamos, um pouco maiores. Ainda assim, a empresa – que funciona na casa do casal – mantém estrutura, produção e funcionamento bem artesanais.
Para iniciar o processo de fabricação do Graukäse, o leite ordenhado no dia é aquecido a 35ºC, “a mesma temperatura que a vaca tem no estômago, que é perfeita para fazer a centrifugação”, explicou-nos a simpática Cláudia, com italiano carregado de sotaque alemão.
A nata que é separada do leite segue sendo transformada em deliciosas manteigas artesanais.
Caro leitor, se você nunca teve a oportunidade de provar uma manteiga do campo, feita com leite de vaca que recebe alimentação saudável, sugerimos fortemente que você descubra um pequeno produtor perto da sua casa. Seu pão com manteiga nunca mais será o mesmo! E se for visitar Campo Tures, não deixe de provar a manteiga de Cláudia! É divina!
Já o leite magro fica repousando por 24 horas. Depois é misturado com o “pingo” da produção do dia anterior e deixado repousar por outras 24 horas. O pH é conferido, e a massa resultado das proteínas que se coagulam naturalmente na superfície – sem a adição de coalho! – vem talhada. Depois a massa é novamente aquecida a 40ºC e vem girada de baixo para cima para distribuir melhor o calor. A massa repousa por cerca de mais 30 minutos e vem girada outra vez, quando então é aquecida uma última vez, a 50ºC.
“Nessa hora conferimos como está o queijo, ou seja, apertamos a massa nas mãos e vemos se o queijo canta”, diz Cláudia, referindo-se ao barulho característico que o queijo faz ao entrar em atrito com as mãos.
Estando no ponto certo, a massa vem tirada do soro. Quando enxuta, a massa é salgada e enformada, tudo de forma completamente manual. As formas ficam na sala de preparação por dois dias para que o soro solte bem da massa. Depois o queijo é desenformado e colocado em uma sala de maturação com temperatura controlada de 24ºC, com 80º de umidade. Quando o queijo começa a ficar amarelinho por fora é então levado a uma sala fria até que seja comercializado (ou consumido!).
Os tipos de Graukäse
Cláudia e Roland produzem três tipos de queijos bem tradicionais do Valle. A diferença está apenas no processo, já que todos são feitos do leite desnatado e sem a adição de coalho.
O primeiro dos três é feito com grânulos mais grossos e não é demasiadamente prensado nas fôrmas. Fazendo dessa maneira, câmeras de ar permanecem entre a massa e o queijo acaba maturando de dentro para fora. Entre uma semana e dez dias o queijo já está pronto para ser consumido. Nesse método de produção, o queijo fica com um aspecto granulado, com partes brancas e outras mais escuras. A consistência é molinha e o sabor bem ácido.
Já o queijo típico do Valle Aurina é feito com grânulos bem mais finos e é muito bem prensado para retirar o ar de seu interior. Nesse processo, o queijo acaba maturando apenas na parte externa, ficando branco no centro e amarelinho por fora. O sabor acaba sendo mais suave e o aroma mais delicado que o do queijo anterior.
O terceiro tipo se chama Graukäse Ziggolan, bem mais enxuto e com a massa mais seca, próprio para ralar sobre a massa.
“Antigamente, no outono, quando se matavam os porcos, o sangue era recolhido e as crianças tinham o trabalho de ficar girando o sangue para que não coagulasse até que o líquido fosse misturado em farinha de trigo, formando uma massa, como um tagliatelle. A massa era secada e guardada para ser consumida no inverno, como fonte proteica. O Graukäse ou o Ziggolan ralado sempre acompanhavam a tradicional massa de sangue”, contaram Cláudia e Martin.
A tradição
Foi só quando chegamos ao Mittermaihof, na casa da acolhente Agnes Laner, que entendemos o que Martin quis dizer com “estrutura industrial” quando estivemos no Moarhof.
Na casa de Agnes não há salas com umidade e calor controlados, nem vem mensurado o pH da massa láctea durante o processo. Toda elaboração é feita em um pequeno quartinho da casa, um reduto onde Agnes transforma o leite que ela mesma ordenha. Durante as etapas, Agnes se vale dos seus cinco sentidos mais do que qualquer apetrecho externo.
“Aqui é tudo muito pequeno, eu trabalho do mesmo jeito que era feito anos atrás”, explicou ela logo depois de nos receber calorosamente naquela manhã fria de primavera no Süd Tirol.
Para saber se a massa láctea anda bem para a fabricação, os produtores escutam o barulho que faz quando é espremida entre os dedos, veem a cor do soro do leite ou tocam a massa com as mãos para saber se a temperatura é apropriada.
No caso de Agnes, a experiência também entra em jogo. O sabor do seu Graukäse é enriquecido com pimenta preta cuja quantidade é colocada a olho. “Sou uma das poucas produtoras que acrescenta a pimenta na hora da salatura”, esclareceu.
Já Martha Schneider, a terceira produtora que visitamos, tem na forma de prensar o queijo o seu principal diferencial. Martha não usa muita pressão nas mãos – deixando intactas algumas câmaras de ar – , mas coloca um pedaço de madeira sobre a massa já enformada deixando o soro excedente escorrer sob leve pressão. O resultado é um queijo no meio termo: nem totalmente branco, nem muito amarelo por dentro.
“Assim já fazia minha nonna e depois dela minha mãe”, disse Martha que elabora o leite das suas duas vaquinhas, duas vezes por semana.
Depois de nos mostrar o seu jeito de fazer o Graukäse, Martha nos mostrou a sua “sala de maturação”: um pequeno armário revestido de tela onde guardava apenas 5 formas de Graukäse, todas com aspecto e tamanhos diversos, pronto a indicar que nenhum dia de produção é igual é ao outro e que cada queijo – assim como cada produtor – é singular.
Um queijo, uma Fortaleza
Como vimos, a produção do verdadeiro Graukäse é feita quase que exclusivamente nas casas, onde é usado o leite cru e sem adição de qualquer fermento. A importância do processo artesanal de produção do Graukäse como parte da cultura gastronômica do território é reconhecida desde 2005 pelo Movimento Slow Food e desde então leva o selo de Produto Presidio – ou Fortaleza.
Segundo o Movimento¹, os produtos Fortaleza do Slow Food protegem:
* Um produto tradicional em risco de extinção (um produto da Arca do Gosto);
* Um método de processamento tradicional em risco de extinção (na pesca, pecuária, processamento de alimentos e agricultura);
* Uma paisagem rural ou ecossistema em risco de extinção.
Hoje existem cerca de trinta produtores de Graukäse no grande Vale, sendo que, desses, apenas vinte o fabrica durante todo o ano. Os demais fazem apenas em malga durante o verão.
“O queijo Graukäse é feito apenas por pequenos ou pequeníssimos produtores. Os maiores têm seis vacas leiteiras, mas a maioria tem apenas uma ou duas vacas na estala”, esclareceu Martin.
1 Saiba mais sobre as Fortalezas Slow Food em www.slowfoodbrasil.com/fortalezas
As características de um Graukäse
Como vimos, não se tratando de um queijo com receita padrão, o queijo cinza do Valle Aurina apresenta características diferentes entre os produtores.
A força com que a massa é prensada nas fôrmas, por exemplo, poderá alterar o sabor e a consistência do queijo ao final do processo. Todos eles, entretanto, possuem uma característica que curiosamente é muito apreciada nos dias de hoje: o baixo teor de gordura.
Enquanto os antigos estavam preocupados em encontrar fonte de energia e de gordura saudável nos alimentos hoje nós fazemos exatamente o inverso!
Em linhas gerais, entretanto, o Graukäse típico é um queijo de sabor forte, com notas ácidas e amargas, cheiro bem marcante e forma irregular. Ah, e bem interessante: o Graukäse não chega a criar casca. O seu exterior ganha apenas um tom amarelado e um aspecto gelatinoso pela ação dos microrganismos vivos do ambiente.
Na hora de desgustar
O sabor forte do Graukäse casa muito bem com uma fatia de pão de centeio (com bastante erva doce!) e manteiga… e só de escrever isso minha boca já se encheu de água!
Foi assim que provamos na casa de Agnes e de Martha, cada uma com a sua receita de Graukäse. Foi assim que provamos também na nossa própria casinha quando provamos a manteiga e o queijo de Cláudia!
Mas a combinação clássica mesmo, aquela consumida no Valle nos dias de hoje, leva Graukäse, uma dose de óleo de semente ou de oliva e cebola crua fatiada bem fininha.
Já como prato quente, o Graukäse entra na preparação do Knödel, uma receita antiga feita de pão velho e tudo o que estava prestes a estragar. Uma herança dos tempos em que o alimento era escasso.
“Hoje, no Alto Ádige é possível encontrar dezenas de receitas para o Knödel, feito com fígado, sangue, espinafre, milza (baço!). A versão mais conhecida é feita com speck, que era bem rara antigamente. Em Campo Tures, todavia, o Knödel é feito com Graukäse”, contou Martin.
A bolinha feita de pão, vegetais e Graukäse é frita em um pouco de óleo e depois imersa em caldo de carne ou vegetais.
E claro! Não nos esqueçamos da preparação curiosa e clássica do Alto Ádige: o macarrão feito de farinha e sangue de porco. Ela não pode ir para a mesa sem o Graukäse!
Nossa passagem pelo Campo Tures não teve Chapeuzinho Vermelho, mas não faltaram sorrisos e acolhidas afetuosas. Como as pequenas produtoras de Graukäse, Chapeuzinho seria muito feliz por aqui.
[su_box title=”Moarhof”]Ahornach, 38 – 39032 Sand in Taufers, Itália
www.moarhof-hofkaeserei.it
[/su_box]
[su_box title=”Mittermairhof”]
MIttermair, 57 39030
Selva dei Molini, Valle Aurina, Campo Tures,
Süd Tirol, Itália
facebook.com/mittermairhof.hofkaserei
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