Dia 153 – 1 de Fevereiro– Quinta-Feira: Crise política, desnutrição, tradições gastronômicas e esperança

O primeiro dia do mês de fevereiro pareceu ter muito mais que vinte e quatro horas.

Tudo começou às 5:30 da manhã quando levantamos para organizarmos nossas coisas, tomarmos um banho, nos despedirmos do querido casal Sônia e Guido e partirmos para o extremo norte do Equador. A saída de Quito antes que o dia clareasse não tinha a ver com o trânsito matinal de uma capital, mas com os rumores de que o dia seria de grandes manifestações políticas e confrontos entre situação e oposição no centro da cidade. Em realidade, o local de encontro das facções seria a uma quadra da casa de Sônia e Guido e por certo as ruas no entorno seriam fechadas por conta do tumulto.

A situação politica atual do Equador, não diferente do que acontece nos demais países da América do Sul, está bastante fragilizada. No domingo próximo (dia 04.02) será realizado um referendo onde a população terá que responder 7 perguntas sobre algumas questões centrais da política atual. Os equatorianos terão que responder, por exemplo, se permanece a possibilidade de reeleição do presidente por indeterminadas vezes ou se são contra à alteração legislativa feita pelo atual governo que permitiu tal possibilidade.

Por aí já se nota que o clima no Equador está fervendo. E era desse fervo é que queríamos passar longe.

Nessa toada, às nove da manhã já estávamos na cidade de Ibarra, onde nos encontraríamos com o Chef Wilman. Antes disso paramos apenas para conhecer os famosos doces da cidade de Cayambe. Um misto de rosquinha e biscoito, o doce de Cayambe é aerado e feito de manteiga…o gosto lembra um folheado (alguns o chamam de biscoito esponja). Muito bom mesmo!

Mas voltando à Ibarra. Chef Wilman estudou gastronomia em Buenos Aires, mas retornou ao seu país para trabalhar e constituir família. Ele que já foi professor na área de gastronomia, hoje se dedica a implementar projetos sociais voltados à alimentação saudável e de qualidade para a população de baixa renda, em especial para os descendentes indígenas que vivem em Angochagua, cerca de vinte minutos do centro da cidade.

E foi pra lá justamente que o chef nos levou.

Nossa primeira parada foi na casa de Carmita e logo vimos que a comunidade indígena por lá em quase nada se assemelha à uma aldeia “tradicional” brasileira.

Equador
Carmita, a Caranqui que aprendeu a cultivar alimentos e salvou o filho da desnutrição

Os descendentes indígenas aqui vivem em casas de alvenaria; cada família tem sua propriedade demarcada; não há mais uma forma de organização liderada por um cacique. De toda forma eles continuam a viver nas terras dos seus ancestrais que é, segundo nos contou Wilman, legalmente protegida contra a alienação para pessoas que não possuem sangue Caranqui.

Mas o que fomos fazer lá afinal?

Duas coisas: primeiros fomos conhecer uma pequena parcela do trabalho que Wilman desenvolveu com os índios num projeto liderado pela Organização das Nações Unidas. O projeto era voltado para a segurança alimentar e tinha como objetivo combater a desnutrição infantil na comunidade indígena de Angochagua. Ao que nos foi relatado, Angochagua possuía o maior índice de desnutrição de todo o Equador.

Desnutrição em uma comunidade indígena. Como isso foi acontecer?

 

Bem, tudo indica que com a chegada da civilização, a alimentação dos índios foi gradualmente piorando. Os ovos produzidos pelas galinhas já não eram mais consumidos, mas trocados na cidade por bolachas e outros produtos industrializados de baixo teor nutricional.

As terras eram usadas somente para o cultivo de batatas, que apesar de versáteis e saborosas, não suprem a necessidade diária de nutrientes para manter um indivíduo saudável. E nessa história toda é que entra Carmita, escolhida para participar do projeto por de ter sido detectada desnutrição avançada em um de seus filhos.

Hoje a realidade ainda segue em estado de atenção, mas ao menos com o filho de Carmita não há mais com o que se preocupar. Com informação, doação de mudas e sementes e algum treinamento, agora a família cultiva uma série de outros alimentos, como a guinoa, o tomate del árbol, cenouras e outras hortaliças, além de ervas que servem tanto na alimentação como para o uso “medicinal”. Além das galinhas, hoje eles também criam porcos e da venda dos filhotes conseguem renda para comprar o que não produzem.

O projeto ainda se encarregou de mostrar à população formas diferentes de preparar um mesmo alimento, a fim de garantir que se mantenham firmes no propósito de se alimentar de forma saudável com o que produzem em casa.

truta
Luci, descendente indígena que vive da criação de trutas

O segundo motivo que levou até Angochagua foi a criação de trutas de Luci, que também é descendente dos Caranquis e que faz dessa atividade sua fonte de renda. Com duas trutas pescadas na hora, Wilman nos mostrou ali mesmo, no campo e sem grandes instrumentos culinários, que é possível fazer uma refeição saudável e deliciosa com ingredientes disponíveis ali mesmo, naquela comunidade.

O chef preparou três versões de ceviche de truta, comprovando, de uma vez por todas, que o ceviche equatoriano é super diferenciado, versátil e muito, muito saboroso.

ceviche de truta
Wilman Andrés Mejía: chef com propósito

A primeira versão foi feita com suco de maracujá; a segunda, suco de Physalis;  e a terceira com tomate de árbol. Em todas as preparações foram acrescentadas sementes tostadas de sambo, uma espécie de abóbora, e chocho, uma leguminosa parecida com o milho muito utilizada nessa região do Equador.  [Assista o vídeo com as receitas clicando aqui!]

Assim com no Brasil ou em qualquer parte do mundo, o problema da desnutrição é inaceitável se tomarmos em consideração a capacidade produtiva mundial, a diversidade e riqueza de alimentos que crescem sem muito esforço e a quantidade de alimentos que são desperdiçados todos os dias.

ceviche de truta
Pronto para atacar a trilogia de ceviches

Falar em desnutrição em pleno 2018 (assim como em obesidade) é atestar que estamos desinformados (como no caso dos Caranquis) ou simplesmente indo na contramão de tudo que já foi estudado e comprovado em termos de alimentação saudável.

Porque ainda fechamos os olhos para essa parte fundamental da vida e mantemos nossa alimentação tão pobre e tóxica?

Depois dessa incrível experiência, Wilman ainda nos levou para conhecer duas delícias com tradição centenárias da cidade de Ibarra. Helados de Paila e Empanadas de Morocho.

sorbet Equador
Helado de Paila sabores amora e guanábana

Os sorvetes de palha são na verdade um sorbet, feitos com o suco integral de fruta com açúcar, mas sem acréscimo de leite ou outra espécie de gordura. Para prepará-lo, gelo e sal são colocados sobre um ninho feito com palha que ajuda a manter a temperatura fria necessária para transformar o suco em sorbet. Uma panela de cobre é colocada sobre o gelo e ali, durante quinze minutos, o suco é constantemente mexido até congelar e ganhar a consistência de sorvete. Muito mais saudável que os sorvetes industrializados!

O sabor fica bem intenso, bem presente. O tradicional é misturar o sabor doce da guanábana com o azedinho da amora. Mas é possível encontrar outros sabores, como lulo e taxo, frutas típicas da região.

E depois do doce…vem o salgado! As empanadas de Morocho tem o formato de um pastel e também são fritas. Mas as semelhanças com o pastel brasileiro terminam por aí. A massa da empanada é feita com uma espécie de milho branco, fermentado e moído, o tal morocho. A forma certa de fazer é segredo guardado por quatro gerações. Nos contou a dona da lanchonete que sobrevive apenas da venda das lendárias empanadas de morocho que manda sua iguaria para equatorianos que vivem nos quatro cantos do mundo.

Bem, a empanada é recheada com arroz branco, ervilhas, cenouras e frango desfiado. É crocante e bem compacta, não há ar entre a massa e o recheio. Achamos bem curioso…não havíamos comido nada parecido até então!

empanada de morocho Equador
Empanada de Morocho, diferente de todas as empanadas que já havíamos provado

Depois desse tour gastronômico fomos descansar na casa de Wilman. O sol forte e o clima seco fazia a temperatura parecer bem mais que os 18ºC que indicava no termômetro. À sombra, o frio batia de leve, como num clima desértico.

Conhecemos a esposa e os filhos de Wilman e depois de umas duas horas conversando sobre o país, sobre a gastronomia e sobre viagens decidimos que era hora de encararmos a mais temida da fronteiras até o momento.

A travessia entre Equador e Colômbia passa por momentos complicados por conta da crise política e econômica vivida na Venezuela. Todos os dias milhares de venezuelanos deixam o país em busca de melhores condições de vida. Eles se espalham por toda a América do Sul e quanto mais perto do seu país mais visível e presente fica a fuga pela sobrevivência.

Passava um pouco das cinco da tarde quando saímos de Ibarra. Nossa intenção era dormir mais perto da fronteira para fazer os trâmites cedinho no dia seguinte. Ouvimos relatos de amigos overlanders que ficaram 4, 5, 10 horas na fila para conseguirem seguir para a Colômbia.

Logo escureceu e ainda estávamos na estrada. A previsão era de que em uma hora estaríamos no posto de imigração, mas uma quantidade absurda de caminhões na rodovia freou nossa expectativa.

Chegamos na divisa com a Colômbia às nove da noite e o que vimos não era nada animador. Uma única e quilométrica fila de pessoas que tentavam se aquecer e se entreter enquanto aguardavam o atendimento tanto para sair como para entrar no Equador.

Paramos por um momento para analisar a situação e ver o que faríamos. As pessoas nos diziam que durante o dia a fila só aumentaria e que seria melhor entrarmos na fila imediatamente.

Apesar do cansaço e do frio, vimos que a cada minuto chegavam mais e mais pessoas, então resolvemos encarar a fila ainda à noite. No total, foram quase quatro horas de espera para simplesmente conseguirmos carimbar a saída do Equador em nossos passaportes.

Apesar da situação difícil, não podíamos nos queixar. Nossa travessia era só mais um passo na nossa aventura gastronômica pelo mundo. Já para os portadores de passaporte venezuelano, a fila significava algo bem mais precioso: esperança.

Depois de muita espera e muito frio estávamos aptos a cruzar a ponte que separa os dois países. Já era quase uma da manhã e ainda tínhamos que fazer os trâmites para ingresso na Colômbia que, para a nossa sorte, foram muito mais rápidos (continua no dia seguinte).

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