O Cheese 2019 propôs colocar o pé no freio e resgatar o sabor único dos Queijos Naturais
O Cheese é o evento bianual organizado pelo movimento internacional Slow Food voltado para um dos mais apreciados alimento do mundo, o queijo. Quatrocentos e cinquenta expositores trouxeram o que há de mais precioso no mundo dos lácteos para satisfazer a curiosidade e o paladar da multidão que se formou pelas ruas de Bra no último final de semana.
Com o tema Natural é Possível, esse ano o evento foi além da discussão do uso do leite cru em contrapartida ao uso do leite pasteurizado. O Cheese 2019 trouxe à tona o uso dos aditivos, em especial, a utilização dos fermentos selecionados em laboratório.
Segundo os dados divulgados na conferência “Queijos naturais. Pastagens, raças, leite cru e fermentos naturais”, apenas 5 multinacionais produzem todo o fermento utilizado nos queijos em todo o mundo. Ao todo, a indústria seleciona, separa e multiplica em laboratório 15 espécies diferentes de bactérias. Em comparação, em um único laticínio de um pequeno produtor de queijos é possível encontrar 50 diferentes tipos de bactérias, uma biodiversidade que é perdida com a industrialização.
Talvez soe estranho para a maioria dos humanos falar em biodiversidade de um mundo microscópico. Entretanto, a existência desses bichinhos invisíveis a olho nu é indispensável à vida humana. Eles regulam muitos de nossos processos fisiológicos e reforçam o nosso sistema imunológico.
E é por isso que – comentaram os estudiosos que palestraram no Cheese – estudos apontam o consumo de leite pasteurizado ao longo dos anos (leia-se: livre de microrganismos) como a principal causa do desenvolvimento da intolerância à lactose que a humanidade enfrenta hoje.
Qual queijo você anda comendo?
De regra, queijos são feitos basicamente de leite, sal e agente coagulante. Corantes, fermentos e coalhos bioquímicos, conservantes e até aromatizantes podem entrar nessa lista de acordo com o produtor. O leite, pasmem, entra como ingrediente secundário em alguns “queijos” nos Estados Unidos, cuja composição leva menos de 50% da matéria prima fundamental para a sua fabricação. Se você quiser saber mais a respeito, uma rápida pesquisa no Google com o termo “What is american cheese?” pode dar uma noção acerca da indústria dos processados “a base de queijo”, made in USA.
Você costuma ler o rótulo dos alimentos que consome? Do que é feito o seu queijo preferido?
Aqui na Itália, onde a atividade casearia é muito importante e a cultura alimentar é bastante tradicional, o alarde maior é com os queijos feito com leite em pó. Segundo pesquisa realizada pelo movimento Slow Food apresentada na última sexta-feira, só 9,7% dos regulamentos que disciplinam a produção de queijos DOP e IGP na Europa vetam expressamente o uso de leite em pó. Apesar da pressão do resto da comunidade europeia, a Itália segue proibindo por lei a produção de queijos sem a utilização de leite fresco.
Mas a tendência é que os tradicionalistas tenham batalhas duríssimas a enfrentar num futuro não muito distante. Empresas já trabalham num novo tipo de “queijo”, dessa vez, sem rastro de produto animal. Na prática, os mestres queijeiros da moderna geração sintetizam a sequência de DNA que codifica a proteína da caseína e a incorpora em um micróbio. Este se alimenta de açúcares em um tanque de fermentação e secreta proteínas da caseína no caldo. O resultado seria um queijo com sabor e qualidades nutricionais semelhantes ao queijo de leite animal. A bandeira dessas novas start ups da alimentação está no menor uso dos recursos naturais: um queijo feito sem uso da terra, sem necessidade de tanta água, sem criação de animais e zero emissão de gases do efeito estufa.
O discurso é evidentemente atraente. Mas será que não é parte de uma sociedade que procura sempre por um “jeito consciente” para justificar o consumismo? Não se trata de mais um “vamos reciclar!” quando deveríamos parar de produzir tanto lixo?
Mas, afinal, o que é um Queijo Natural?
A palavra natural foi questionada sob vários pontos de vista nesse evento e, a partir do que dissemos acima, a discussão é mesmo fundamental.
Seria natural um queijo feito com zero aditivos químicos? Seria um queijo feito de forma artesanal, sem uso de maquinários? Ou talvez natural seria um queijo feito apenas com coalho vegetal?
Definitivamente a última hipótese não é verdadeira, apesar dos queijos feitos com a ausência de coalho de origem animal se alinharem frequente e espontaneamente com a filosofia da produção dos queijos naturais.
A utilização de grandes maquinários que controlam a temperatura, a umidade, a ventilação e realizam a rotação do queijo durante a produção de queijos é outra questão ignorada no conceito de “queijo natural”.
Por natural entende-se, num primeiro momento, o queijo que não é feito com produtos artificiais, ou seja, sem o acréscimo de ingredientes sintetizados em laboratório. Mas esse é só um ponto de partida. Segundo Bronwen Percival, co-autora do livro Reinventing the Wheel: Milk, Microbes and the Fight for Real Cheese e co-fundadora do MicrobialFoods.org, a questão dos queijos naturais vai muito além da produção com fermentos naturais. Tudo começa muito, muito antes, com atenção ao bem-estar animal. Como são criados e do que se alimentam os animais leiteiros são as duas perguntas iniciais a serem respondidas para que compreendamos o conceito de queijo natural antes de adentramos na fase de transformação do leite.
Segundo esse conceito, não é possível chamar natural um queijo fermentado naturalmente com o soro se o leite que se pretende utilizar é proveniente de animal criado em sistema intensivo, tratado com alimento geneticamente modificado e ordenhado por robôs.
Faz todo sentido, não?
Como se vê, o debate acerca do tema proposto esse ano é só o pontapé de uma discussão longa sobre a produção do queijo no mundo, uma discussão da qual a sociedade ficaria completamente à margem não fosse por eventos como o Cheese.
Mas no que um queijo natural é melhor que um queijo não natural?
Para Piero Sardo, Presidente Slow Food para a Biodiversidade, o uso de fermentos químicos tem um “efeito banalizante”. Assim como o leite pasteurizado, os fermentos selecionados em laboratórios padronizam os queijos, tiram a sua identidade ao mesmo tempo que escondem a qualidade da alimentação fornecida ao animal. Com a utilização de um leite “morto” pela pasteurização e “padronizado” pelo uso de substâncias sintetizadas não é possível mais sentir no queijo as características únicas provenientes daquele único laticínio, daqueles animais, daquele território. Um queijo produzido no sul da Itália pode ter o mesmo gosto de um produzido na China.
Utilizando o leite cru e o fermento produzido pelo próprio produtor, por outro lado, o queijo tem sua identidade preservada, o que compreende a alteração do sabor, da consistência e da cor do queijo conforme as estações do ano e de acordo com a alimentação dada ao animal. O queijo, assim, não é resultado apenas de uma fórmula química reproduzida em grandes tanques de aço inox, mas é reflexo de uma série de fatores bióticos presentes no campo e no laticínio.
Basicamente, um queijo natural não é nada mais do que um queijo feito com ingredientes que não se compram em nenhum laboratório, com o uso de leite cru proveniente de animais que se alimentam apenas de pasto e feno.
Se falássemos de queijo natural anos atrás, o assunto não faria o menor sentido, concorda? Hoje, entretanto, a discussão é essencial para mantermos a biodiversidade alimentária. E pelo andar da carruagem, o conceito de queijo natural evoluirá conforme forem surgindo novas técnicas industriais de produção de queijo. Esperamos apenas que não cheguemos ao ponto de reduzirmos ao conceito de natural ao queijo feito com leite fresco, líquido, ordenhado de um animal de verdade.
Quanta informação importante!! Jamais tinha pensado a respeito! Muito obrigada por compartilhar isto conosco!! Já tinha desejado todos os queijos durante a cobertura do evento no Insta de vcs, mas agora sabendo o que são queijos naturais e que são únicos, este evento passou a estar na minha lista de sonhos a realizar!! Parabéns!!!
Muito obrigada!! O Cheese é um evento que merece mesmo uma visita! Em 2021 nos vemos lá, que tal? 🙂