Os bastidores do Slow Food em Bra

Depois de conhecemos o movimento em vários países do continente americano, chegou a vez de vermos de perto onde e como tudo começou

A previsão de conhecermos a gastronomia de cerca de 70 países ao final desse projeto nos fascina cada dia mais. Dos destinos que farão parte desta nossa viagem gastronômica pelo mundo, alguns acabam naturalmente gerando uma maior expectativa. Foi o caso do México, onde a culinária ancestral ferve em cada canto do país; foi o caso de Cuba, onde a história de escassez atiçava a nossa curiosidade; e certamente é o caso da Itália, reconhecida mundialmente pela boa comida.

Além disso, parte dos nossos ascendentes viveu aqui e por isso alguns lugares desse lindo país tem um significado especial para nós dois. Brescia é um deles, porque é de onde deriva Bressiani, o sobrenome do Vinicius. Mantova, Crema e Pádua são as terras de nossos bisnonos.  

Afora o aspecto genético, pessoal, é sem dúvida a cultura gastronômica do país que nos torna tão apaixonados por essa terra. E essa é a razão pela qual a pequena Bra está no meio dessa nossa longa lista de lugares especiais da Itália.

Foi pra lá – com grande ansiedade – que nos dirigimos depois de alguns dias pela região do Alto Vale do Tanaro.  

Bra fica em Piemonte, numa região bucólica da Itália conhecida pela produção de grandes vinhos. Foi ali, na década de 80 e em pleno boom da globalização e do início das cadeias de fast food na Europa, que um cidadão italiano de nome Carlo Petrini começou a falar de uma organização mundial que tivesse o alimento como foco principal.

Nascia – lentamente – o Slow Food.

Caracol Gicante: o símbolo Slow Food está na entrada de Bra

Em nossa visita ao prédio onde tudo foi idealizado – hoje sede do Slow Food Itália – tivemos o grande privilégio de encontrar e conversar com pessoas que estavam ao lado de Petrini quando tudo isso começou.

Boccondivino, a primeira Osteria Slow Food

Na época em que foi concebida a filosofia Slow Food, a ideia de Carlo Petrini pareceu muito maluca e muitos o desacreditaram, contou-nos Gianni, presidente da conduta Slow Food de Bra e quem gentilmente nos guiou pela cidade.

Se para os dias de hoje o projeto é ambicioso, é fácil imaginar a desconfiança que uma ideia dessa proporção gerou na época.

O que nós não imaginávamos – nem havíamos lido a respeito – é que o embrião do movimento Slow Food se desenvolveu dentro de uma Cooperativa criada em 1982, chamada Tarocchi. A Cooperativa era formada por conhecedores e gastrônomos da região – uma espécie de “sociedade dos poetas mortos da gastronomia” – , incluindo, é claro, Carlo Petrini.

Em 1984, os associados inauguraram, no centro de Bra, a Osteria  del Boccondivino, um restaurante até hoje administrado pela Cooperativa e dedicado a oferecer pratos tradicionais da região Langue-Roero. Naquela época, nos contaram os italianos, as Osterias costumavam fazer pratos baratos, com baixa qualidade para atender os operários. A proposta do Boccondivino era inovadora porque focava na qualidade da matéria-prima. 

O restaurante fica no prédio que, se falasse, teria muita história para contar
Por toda Bra

Por cerca de vinte anos, quem esteve a frente da cozinha da Osteria foi Maria Pagliasso, brava chef de cozinha, falecida em 2018 aos 96 anos e lembrada com muito carinho por todos com que tivemos o privilégio de trocar algumas palavras em nossa visita a Bra. Maria criou o menu do Boccondivino com prato típicos piemonteses e desenvolveu receitas que são copiadas e reproduzidas até hoje em outros lugares, como o lendário talharim feito com 40 gemas de ovos para cada quilo de farinha. O restaurante serve a receita até hoje, acompanhada de molho sugo com linguiça típica de Bra (9,50€).

O Movimento Internacional

Foi dois anos após a abertura do restaurante que o Slow Food nasceu efetivamente, inicialmente como um braço da Cooperativa. O marco histórico que batiza a organização no âmbito da Itália foi o protesto de Carlo Petrini e de seus seguidores à tentativa de construção de um McDonald´s no centro de Roma.

Mas o reconhecimento da importância do movimento não veio subitamente e nem por parte dos italianos. Foi em Paris, em um Congresso realizado em 1989, que o Slow Food ganhou visibilidade e, a partir de então, ganhou conotação internacional.

Desde então, a organização que tem por lema defender o alimento bom, justo e saudável vem tomando corpo e hoje está presente em 160 países, com inúmeros projetos diferentes. Imaginamos que nem Petrini tinha uma visão tão otimista de quão longe sua filosofia iria chegar.

No ano em que a fundação oficial do movimento completa 30 anos, o Slow Food possui tantas frentes de atuação que num primeiro momento é até difícil de entender. Para gente foi assim e para muitos outros associados que conhecemos também.

A complexidade da rede, contudo, é consequência inerente ao número de pessoas e nacionalidades envolvidas. São mais de 100 mil associados, entre eles pequenos produtores, grandes empresas, chefs de cozinha, cozinheiros e pessoas de outras áreas profissionais que se alinham à filosofia Slow Food.

Como já tivemos oportunidade de constatar, cada país, região ou cidade tem desafios diferentes a serem superados em relação ao alimento e cada pequena comunidade Slow Food desenvolve projetos conforme a necessidade local.

Por isso é possível encontrar a bandeira da organização envolvida com crianças, com hortas comunitárias, com mercados de pequenos agricultores, com aliança de cozinheiros. É possível vê-la também em projetos com pescadores, com indígenas, com agricultores e criadores de animais. Projetos como a “Arca do Gosto” e as “Fortalezas Slow Food” estão por todo o mundo e visam salvaguardar a biodiversidade de espécies vegetais e animais e também o modo de preparar um determinado alimento.

Mercado da Terra em Bra: pequeno produtor de queijo (delicioso) de ovelha
Mel, avelãs e compotas na barraquinha da pequena produtora que estampa na cadeira a bandeira do Brasil
Na companhia dos bravos e pequenos produtores do Mercado da Terra
e dos membros da Conduta Slow Food Bra

Muitos desses projetos pudemos ver acontecer de perto e já compartilhamos um pouquinho com vocês por aqui:

- Slow Fish na Costa Rica
- Mercado de La Tierra no México
- Aliança de Cozinheiros em Cuba

A ideologia Slow Food é verdadeiramente transformadora. Nós nos tornamos grandes admiradores dela e ficamos mais fãs cada vez que encontramos pelo caminho pessoas que doam seu tempo e sua energia à organização, pessoas que fazem trabalhos voluntários em prol da educação e da preservação dos alimentos na forma como a filosofia foi concebida.

É por causa delas – somadas – que hoje nós dois temos uma nova visão do mundo e uma consciência mais desperta enquanto consumidores, cozinheiros, pesquisadores… enquanto gastrônomos.

Ainda temos muita estrada pela frente e certamente esse aprendizado não acaba tão cedo. Enquanto isso, deixamos o nosso agradecimento a todas as pessoas que trabalham incansavelmente pela manutenção da ideia original do movimento.

Encontro inesperado: a emoção de encontrar pessoalmente Carlo Petrini

E não é que acabamos encontramos esse destemido sonhador de nome Carlo Petrini em Bra?

“Vocês tem sorte”, ouvimos dos locais, já que o líder do Slow Food vive viajando e participando de congressos no mundo todo. Ele estava almoçando no restaurante que Gianni nos levou e pudemos finalmente apertar a mão do homem que um dia teve uma ideia louca muito genial.

[su_box title=”Osteria del Boccondivino” box_color=”#e5e6e4″ title_color=”#090a09″ class=”Pasticceria Cagna”]Via Mendicità Istruita, 14, 12042 Bra CN
Horário: Todos os dias das 12h-15h | 19h-23h
www.boccondivinoslow.it
[/su_box]

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