Carne Crua: o prato italiano parente do Tartar e da Hackepeter

Pra mim, Dani, carne boa é aquela bem passada, solada, torrada, como aquele pedaço que o assador esquece na grelha no final da churrascada.

Fez cara feia pra mim agora, né? Tudo bem, eu te entendo, você não é o primeiro.

Hoje penso que não é exatamente o gosto da carne sangrando que eu rejeito, até porque raramente o coloco na boca. O que me incomoda – e sei que não estou sozinha nessa – é a associação daquilo que estou prestes a ingerir com o animal sacrificado.

Carnívoros dirão que isso é bobagem, que os homens caçam para se alimentar desde Adão e Eva e que foi a proteína animal a responsável pela nossa evolução.

Veganos dirão que os tempos são outros e que não é mais cabível pensar em evolução com base no sofrimento animal e a destruição do planeta.

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Com respeito às duas posições, eu me mantenho firme no propósito de conhecer e provar tudo (ou 99,99%) enquanto durar essa jornada investigativa pelo mundo dos alimentos. Vinicius, tenho certeza, seguirá provando tudo e qualquer coisa para sempre, porque, pra ele, essa jornada não teve começo, nem terá fim.

Carne crua moída pra fazer Hackepeter

Meu compromisso com o nosso projeto já me levou a comer coisas bem estranhas como grilo, formiga, larva de mosca, batata colhida há dez anos e cérebro de porco.

Mas é na Itália, na terra dos meus bisavôs e onde eu supostamente estaria mais familiarizada com a dieta local do que com as comidas exóticas da América, que venho sendo desafiada constantemente.

Na região de Piemonte, que faz divisa ao oeste com a França e ao Norte com a Suíça, uma preparação não pode faltar no menu dos italianos. Estou falando dela, da carne crua.

Não posso dizer que não me surpreendi quando nos ofereceram pela primeira vez. Estávamos na casa da Dani, uma amiga italina nascida e criada na região de Torino. Antes de finalizar o almoço ela resolveu preparar a carne para provarmos como degustação. Misturou, então, um pouco de vitela fresca picadinha com azeite, uma pitada de sal e grana padano ralado na hora.  

Sempre associei a carne crua à comida alemã, a Hackepeter; à francesa, o Steak Tartar; ou à árabe, para fazer Kibe Cru, mas como parte da cultura gastronômica italiana nunca passou pela minha cabeça…será que meus nonos sabiam disso?

O fato é que se eu tivesse crescido em Piemonte eu certamente teria outra visão sobre carne crua ou mal passada. Digo mais, muito provavelmente seria uma das minhas preparações preferidas, já que, por aqui, criança não nega essa iguaria.

Estou falando de forma genérica, naturalmente, mas com base em fatos que eu vi “com meus próprios olhos”, mais de uma vez, nesses últimos dias na Itália.

As crianças não só não negam, como pedem para repetir a porção de carne crua que geralmente faz parte das entradas, a primeira parte do menu italiano que pode chegar a ter mais de dez pratos.

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Pense comigo: sabendo que ainda virão mais meia dúzias de pratos (inclusive sobremesa!), porque a criançada pediria para repetir a carne crua?

Só isso me bastava para aceitar o fato de que o prato está mesmo presente no cotidiano das famílias italianas, que é um gosto cultural passado de geração em geração tanto quanto pizza.

Um bom motivo para os piemonteses apreciarem tanto essa simples e polêmica preparação pode ser resumido em uma palavra: “fassone”. Esse é o nome da raça bovina autóctone de Piemonte que é caracterizada geneticamente pela presença de uma proteína que limita o crescimento muscular do animal. O resultado é uma carne magra e macia, uma combinação rara de se encontrar.

A excepcional qualidade do produto faz dele ideal para o preparo da carne cruda, impossível de ser reproduzida com sucesso com uma carne cheia de nervos e gordura.

Com um bom corte de fassone nas mãos, os italianos já tem 98% da receita pronta, bastando agregar poucos ingredientes que realcem o seu sabor. Em geral, a carne cruda alla piemontese é feita com vitela e é corta em cubos bem pequenininhos. Depois é temperada apenas com azeite, sal, pimenta do reino e parmesão.

Uma variante mais requintada é a carne cruda albanese que ganha lascas de trufas na sua preparação, mas, em geral, o prato não leva mais que cinco ingredientes, uma das características mais marcantes da cozinha italiana.

Cortes de Fassone
Carne magra, rosada e macia

Só para compararmos, as preparações similares dos outros países são bem mais carregadas em ingredientes e temperos.

A versão alemã, conhecida como Hackepeter, é tradicionalmente feita de carne de porco, mas no Brasil foi substituída pela carne de gado (são usados filé mignon, patinho ou coxão mole). A carne é passada pelo moedor e misturada com conhaque, cebolinha, cebola, alcaparras, molho inglês, azeite de oliva, sal, pimenta do reino e gema de ovo.

Já a francesa Steake Tartar, que originalmente era feita com carne de cavalo, hoje leva carne bovina cortada “na ponta da faca”, assim como a italiana. A carne vai temperada com cebola, alcaparras, cebolinha e um molho feito com gema, sal, pimenta do reino, molho inglês, molho de pimenta, mostarda dijon, ketchup e azeite de oliva.

Pra falar do kibe cru a gente já entra numa pegada bem diferente. A carne bovina moída é misturada basicamente com trigo, sal e pimenta. Mas dele ainda vamos falar muito por aqui quando chegarmos no Oriente Médio!

Para fazer Hackepeter e Quibe cru, use a carne moída.
Carne cortada na ponta da faca para fazer Carne Cruda Piemontese ou Tartar francês

Por enquanto vou fazendo meu estágio aqui em Piemonte, que tem sido intensivo. Todas as vezes que fomos convidados a participar de algum almoço de família, algum jantar ou mesmo quando fizemos voluntariado para preparar um jantar que serviu 160 pessoas, a carne crua estava lá.

Confesso que a renunciei umas duas vezes em nome da sobremesa (conseguir chegar ao final da refeição na Itália é coisa pra gente grande), mas nas outras comi carne crua como se fosse queijo coalho.

A aparência continua me incomodando, então trato de não encará-la muito de frente. Deixo para o paladar a tarefa se divertir com a textura macia da carne fresca e o sabor do parmesão que derrete na boca.

Pra você que curte carne crua, aí em baixo está o preparo da típica carne crua italiana. Se eu gostei, não tenho dúvida de que você irá amar!

Antes da receita, apenas um lembrete: a carne deve ser a mais fresca possível, de boa procedência e preferencialmente de vitelo. Na hora de preparar, faça como os italianos, cortando-a primeiro em fatias finas, depois tiras e, por fim, em pequenos cubos. Não triture a carne como se estive picando salsinha e, por favor, não passe a carne pelo moedor. O método de corte conhecido na culinária pelo jargão “na ponta da faca” ajuda a preservar a suculência da carne.

[su_box title=”Receita de Carne Cruda alla Piemontese:” box_color=”#e5e6e4″ title_color=”#090a09″ class=”Fishmarkt”]

Ingredientes
250g de carne de vitela
2 colheres de sopa de Azeite extravirgem
Lascas de parmesão de boa qualidade
Sal a gosto
Pimenta do reino a gosto

Modo de Preparo
Pique a carne em cubos de 2 a 3 cm. Tempere com azeite, sal e pimenta do reino a gosto. Misture bem. Finalize com lascas de parmesão já na travessa que irá servir.

* É opcional acrescentar um dente de alho picado e suco de limão. Nesse caso não coloque mais que uma colher de chá, para que o limão não inicie o processo de cozimento e deixe a carne escura.

Bom Apetite![/su_box]

3 Comentários

  1. Parabens pelo post. Morei 10 anos na Italia, inclusive piemonte, e estava tentando reproduzir a receita aqui e entender qual peça aqui substituiria a de fassone, e você me salvou. Obrigada

    1. Author

      Ah, que legal! Esperamos que tenha ficado ao menos parecida com a italiana (que é muito boa, né??) Abraços e feliz 2020 pra vc!


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