Com uma história que se mistura facilmente com a dos seus países vizinhos – Luxemburgo, Países Baixos, Alemanha e, claro, a França – a Bélgica é um país pequeno e ligeiramente complexo. A nação está dividida por uma fronteira linguística entre o francês e o holandês (e uma pequena parte alemã também), o que, de certo modo, acaba por dividir também a população em termos culturais e políticos (palavra dos belgas que conhecemos, tanto do lado dos Flandres, como de Valônia).
Gastronomicamente, entretanto, não há uma diferença muito marcante entre as regiões norte e sul. Ao menos não hoje, onde é possível atravessar toda a Bélgica de carro – de ponta a ponta – em pouco mais de três horas.
Por isso, é fácil encontrar o famoso Waffle de Liège em Bruges ou as famosa fritas belgas em todo o território nacional. Waffles e fritas, aliás, lideram a lista de preparações populares da gastronomia belga, os quais, num nível de exigência do homem médio (como se diz no Direito), não decepcionam ninguém.
Mas qual o segredo dessas gulosices belgas?
Vamos a elas e a outras delícias que fazem valer a pena uma viagem à terra da cerveja de Abadia e dos chocolates finos (que dispensam apresentações, não é mesmo?)
FRITAS
Comecemos por elas. Consagradas mundialmente ao lado de cheeseburgers e steaks, aqui na Bélgica ela reina como protagonista. São várias as lanchonetes que propagandeiam as suas Frieten, Frituur ou Frietjes em grandes letreiros coloridos, quase sempre seguidos de um grande cone com fritas 3D: Frieten in Puntzak, em neerlandês.
French Fries? No way! Apesar do nome, as origens da batata frita remontam à Bélgica, onde historiadores afirmam que o tubérculo já estava sendo frito no final dos anos 1600. A data coincide, a propósito, com o período de domínio espanhol nas terras belgas. E como vocês sabem, foram os espanhóis que disseminaram as batatas nativas do Peru (e muitos outros produtos da América) pelo mundo.
Mas por que chamam “batatas francesas” então? Reza a lenda que os soldados americanos que chegaram na Bélgica foram introduzidos pela primeira vez às batatas fritas durante a Primeira Guerra Mundial. Como o idioma oficial do exército belga era o francês, os soldados apelidaram as deliciosas batatas fritas de “french fries”. O nome pegou e está aí até hoje.
Portanto, por uma questão diplomática e de reconhecimento do grande feito dos belgas, nada de pedir French Fries na Bélgica, combinado? Sim, esse é o termo correto em inglês e provavelmente os belgas – educados e com grande fair-play – não sairão te xingando por isso (como fariam meus caríssimos italianos em situação semelhante). De toda forma, não custa ser igualmente polido com os donos da casa: peça por frites, fries ou, por que não, belgian fries. Certamente você receberá um sorriso do outro lado do balcão.
Mas o que faz da batata belga ser tão aclamada? Bom, alguns segredos separam a batata frita belgas das demais.
1- A variedade: Não é qualquer batata que pode ser frita e isso os belgas sabem muito bem. Para os iniciantes inadvertidos aqui na Bélgica, as embalagens de batatas nos mercados costumam dizer o nome da variedade da batata e para qual finalidade ela serve: souté, purê ou fritas. Basicamente, para fazer uma boa batata frita é necessário que ela tenha bastante amido. Exatamente por isso, dizem, quanto mais velha a batata melhor é para fazer batatas fritas. As batatas jovem não tiveram tempo de desenvolver amido suficiente. A variedade mais utilizada para fritar, aqui na Bélgica, é a Bintje, criada a partir de cruzamentos genéticos no início do século XX.
2- O corte: Em geral, as fritas belgas tem cortes maiores que aqueles que encontramos em cadeias de fast food, por exemplo. Assim elas ficam crocantes por fora e macias no centro.
3- A gordura: Nesse quesito a receita tradicional belga já sofreu muita variação. Inicialmente as batatas eram fritas em gordura de boi, que foi sendo substituída por óleo vegetal, teoricamente mais saudável. Hoje é difícil encontrar um lugar que faça as fritas em 100% gordura bovina. Algumas “homemade”, feitas por avós belgas, talvez.
4- O preparo: As fritas belgas são fritas duas vezes. Isso mesmo. As receitas não são padrão, mas em geral a primeira fritura é feita em temperatura de cerca de 150ºC, num tempo aproximado de seis minutos. A segunda só inicia depois que a batata descansou por dez minutos, e é mais quente e rápida: 3 minutos a 180ºC.
5- O dressing: sal, pura e simplesmente, não é uma opção frequente para consumir suas fritas na Bélgica. Por aqui, as batatas geralmente ficam cobertas de ketchup, maionese, molho tártaro, mostarda ou uma infinidade de outros molhos que belgas criaram para mergulhar as suas fritas. Um deles, inclusive, foi batizado de “molho Brasil”.
De coloração caramelo-alaranjada, o molho leva mostarda e abacaxi na composição (alguém já viu um desses no Brasil?)
WAFFLES
Primos das panquecas americanas, os waffles são nada mais que uma massa de farinha, ovos, fermento e doses generosas de açúcar e manteiga. A combinação de gordura, carboidrato e açúcar é infalível: você fica tentado a provar os mais diversos tipos de waffles oferecidos tantos nos mercados, como nas ruas da Bélgica.
Eles podem vir cobertos com sorvetes, nutella, chocolate, canela, frutas, mel…ou sozinhos mesmo. Os tradicionais waflles de Liège, cidade francófona da Bélgica, são mais grossos e ainda mais crocantes e caramelizados do que os waffles clássicos. O que o torna tão especial é o Pearl Sugar, o açúcar cristal feito de beterraba que deixa a massa levemente crocante e parcialmente caramelizado. Encontrar os pequenos ninhos de açúcar que ficam intactos é uma experiência particularmente aprazível.
Curiosidade: há rumores de que waffle de Liège não teria nada a ver com a cidade belga. Liège também é como eles chamam cortiça e aparentemente no início do século XX uma fábrica de waffles de Bruxelas teria acrescentado cortiças à massa desses doces para que eles tivessem um preço mais acessível aos trabalhadores pobres da época. Em 1950, o governo teria determinado a proibição da introdução de cortiças no waffle, quando então, foram substituídos pelo açúcar, dando origem ao waffle de Liège que conhecemos hoje. História meio difícil de engolir, você não acha?
SIROP DE LIÈGE
Mais uma vez a cidade de Liège aparece entre os artigos gastronômicos típicos da Bélgica. Dessa vez parece não haver discussão: o xarope feito da redução de maçãs e peras é mesmo originário da cidade “ardente”.
O Sirop de Liége é um tipo de melaço obtido após várias horas de cozimento do suco das frutas (numa proporção de 80% de peras e 20% de maçãs), formando uma pasta marrom muito escura, levemente translúcida.
A consistência é firme, por conta da substância geleificante encontradas nessas frutas e, por isso, é um coringa da gastronomia belga. Além de ser consumido como uma geleia, sobre o pão ou waffles, o sirop é bastante utilizado como espessante de molhos, inclusive para fazer o tradicional carbonade flamande.
CARBONADE FLAMANDE
A carbonada flamenga é o prato belga que se assemelha a nossa carne de panela: pedaços a carne de bovina são cozidas por horas, desmanchando e formando um molho escuro bem denso. No caso, a carne é cozida na cerveja, preferencialmente uma cerveja belga escura. O prato leva também cebola, pedaços de pain d´epices (pão com gengibre, canela e outras especiarias) e o xarope de Liège.
VOL-AU-VENT
É um prato tipicamente consumido na Bélgica, mas deixemos claro: sua origem é francesa. Não há como negar, já que a sua história está ligada ao maior sucesso da culinária francesa, a massa folhada! A expressão “vol-au-vent” indica a massa folhada que contém o prato, que deve ser leve, tão leve que “voa com a menor rajada de vento”.
Basicamente, o Vol-au-Vent significava apenas essa canoa de massa folhada, que pode ser preenchida com um recheio saboroso de livre escolha. Tradicionalmente, ela ganha frango e cogumelos, mas pode ser feito de carne, peixe, crustáceos, caracóis… Originalmente o vol-au-vent não era usado em porções individuais, como se vê hoje, mas numa torta de 20cm de diâmetro.
Veja como é feito esse prato que ganhou espaço de destaque na gastronomia belga:
SPECULOOS
Esse biscoito de canela se tornou o meu preferido desde que entramos na Alemanha. Seja em que país eu estiver, eu sempre procuro por Speculoos para acompanhar meu café-da-manhã, mas não é sempre que eu encontro.
O Speculoos é uma bolachinha típica do Natal e por isso, nos outros países europeus em que o doce não é tradicional, você só encontrará sendo vendido nessa época do ano, com sorte. Já na Bélgica, Holanda e Alemanha é fácil encontrá-lo durante todo o ano.
O segredo da bolachinha está no sabor das especiarias: noz moscada, cravo, gengibre, cardamomo e canela(essa se sobressai). Em 2008 o biscoito virou pasta para passar no pão, fazendo forte concorrências aos cremes de avelãs e amendoim.
CHICONS AU GRATIN
Esse é o prato feito para quem gosta do sabor amargo das endívias! A verdade é que as folhas já não são tão amargas como antigamente, “provavelmente uma adaptação genética para um paladar mais standart”, chegou a conclusão nosso amigo e chef belga Massime Renardt.
Mesmo assim, a Bélgica segue sendo o país dos quais já passamos que mais consome endívias. No “Chicons au Gratin”, as endívias são envolvidas em uma fatia de presunto, mergulhadas em molho bechamel e cobertas por queijo ralado que irá gratinar no forno. Nada mal, hein?
A receita desse prato delicioso da gastronomia belga você confere abaixo ou em nosso Canal do YouTube.
FILET AMÉRICAIN
Também conhecido como “preparado americano”, essa receita que leva carne crua e temperos tem a mesma raiz do steak tartare, da hackepeter e da carne batuta (já falamos deles aqui!). Sim, é a versão belga dessa preparação que ganha ingredientes diferentes em cada país. No caso do filet américain é o sabor picante que predomina.
Na hora do preparo, gema de ovos, mostarda, sal, pimenta do reino e óleo são misturados até formar uma maionese. Um pouco de vinagre ou suco de limão dão a acidez. Molho inglês, alcaparra,páprica e molho de pimenta, geralmente tabasco, são introduzidos para dar o gosto característico do Américain.
Nesse ponto, a maionese de cor alaranjada é bem misturada à carne bovina, magra e moída finamente. O resultado é praticamente um patê, cremoso e cheio de sabor para passar no pão.
A receita original talvez não fosse exatamente a descrita acima, que já ganhou inúmeras versões. Essa, com páprica, é, entretanto, a que mais vimos durante a nossa passagem pela Bélgica e é a que mais se distinguia das outras, feitas nos países vizinhos.
Por que se chama filet americano? Bem, aparentemente o Sr. Joseph Niels, a quem se atribui a autoria da receita, não deixou isso muito claro, mas era 1924 e tudo o que era americano era exótico e particularmente na moda…
BOLO DE CARNE AO MOLHO DE CEREJAS
Essa preparação típica da Bélgica é curiosamente deliciosa. O bolo de carne não tem muito segredo, além de ser feito com carne de gado e de porco misturadas. Já o acompanhamento é um tanto diferente: um molho de cerejas denso, açucarado e quente.
Na primeira garfada confesso que o prato belga é um pouco estranho, um pouco pela calda, que me pareceu um pouco doce demais, um pouco pela temperatura da cereja. Estamos acostumados a comê-la geladinha não é? Mas passado o estranhamento inicial, você devora o prato num instantinho.
TORTA DE ARROZ de VERVIERS
Na gastronomia belga, rijstevlaai ou tarte au riz é uma torta com recheio à base de pudim de arroz. É nativa da cidade de Verviers, ao leste da Bélgica e já foi alvo de briga entre o Convivium Slow Food de Bruxelas e a FASFC (Agência Federal para a Segurança da Cadeia Alimentar). O problema? A tradicional torta de arroz leva leite cru na sua composição.
Hoje a torta de arroz de Verviers está entre os produtos protegidos da Arca do Gosto do movimento internacional que homenageia a comida boa, limpa e justa.
Segundo o Slow Food, “a tradicional torta de arroz Verviers ou “dorêye” no dialeto Liégois é preparada com arroz de grão curto, açúcar e, aos que preferem a tradição, leite cru de vacas Herve. Nunca foi possível estabelecer uma data clara para as origens da torta de arroz. No entanto, várias publicações indicam que, já no século XVII, era consumido com mais frequência em Verviers do que em qualquer outra cidade da província de Liège. A indústria têxtil que cresceu ao redor do rio Vesdre transformou a região de Verviers em um importante centro europeu da indústria de lã, que atraiu numerosos comerciantes vindos de terras distantes para se dedicar à venda de lã. Naturalmente, alguns deles trouxeram outros produtos e alimentos, incluindo arroz.
O ingrediente principal foi introduzido; o saber-fazer humano deu origem a essa massa cremosa e saborosa, que se tornou uma especialidade na cidade de Verviers. A torta de arroz Verviers, na sua versão mais tradicional, está atualmente ameaçada pela agência belga de segurança e alimentos, que já colocou em risco a produção do último queijo Herve com leite cru tradicional, e desta vez quer mudar o método de conservação da torta: um estudo deve ser conduzido para determinar se é necessário refrigerar a torta, por razões de higiene, procedimento que alteraria o sabor e a textura originais da torta”.
Então já sabe: se for provar a torta de arroz, procure pela versão artesanal, feita de leite cru. E se quiser privilegiar o gosto e a tradição, peça aquela que está fora da refrigeração. Caso contrário, prove a que estiver a seu alcance. Saberá Deus quando você encontrará outra torta de arroz belga pela frente, não é não?