Peru, lombo, salpicão, farofa, arroz à grega, rabanada. Mais sobremesas. Lentilha, porco no rolete, maionese, peixe assado, sorvete, mousse de maracujá. Salada de fruta. No Brasil não temos a desculpa do frio pra comer um montão, mas mesmo assim as ceias de Natal e de Reveillón são bem, bem fartas. Se você estiver lendo esse post no dia da publicação, três de janeiro, é capaz que ainda sinta os efeitos da comilança dos últimos dias do ano passado.

Pois a você meu querido amigo que nos acompanha nesta viagem gastronômica pelo mundo, dar-lhe-ei um aviso: se você receber um italiano em sua casa em quaisquer dessas festas, dobre o cardápio.

Você que já teve a oportunidade de vir à Itália sabe bem que, por aqui, você pode até estar de férias, mas seu estômago tem sempre muito trabalho. A comida está por todos os lados, as gelaterias te chamam, as cafeterias te seduzem e até os açougues têm vitrines capazes de fazer você ficar parado olhando fixamente nada além de carne crua.

É bizarro, eu sei, até um pouco perturbador. Foi essa sensação que eu tive depois que me dei  conta de que havíamos gasto cinco minutos olhando cortes bovinos e suínos através de vidros como se fossem peças de joalheria.

Descansando em bandejas de prata e decorados com folhas de louro e alecrim, os cortes eram iluminados pelas luzes que chegavam de um imenso lustre de cristal posicionado no centro do açougue. Um tanto exótico, pra dizer o mínimo.

Num olhar superficial, o mercado de alimentos na Itália pode mesmo ser classificado como luxuoso. Barolo, Trufas Brancas e Parmeggiano Regianos são apreciados no mundo todo e  estão longe de caber no bolso da maioria das pessoas.

Mas do tempo que estamos por aqui, mais precisamente nessas últimas semanas de confraternização e festas, cheguei a conclusão de que a comida na Itália está mais para motivo de orgulho do que para artigo de luxo.

O alimento, que já foi muito escasso no país em épocas menos pacíficas, é hoje altamente valorizado e apreciado pelo italiano. Nas gôndolas de supermercados, as embalagens do produtos nacionais trazem em lugar de destaque a bandeira da Itália, usada pelos fabricantes como selo de qualidade.

É marketing sim, mas não publicidade enganosa. Sendo a comida o elemento principal da cultura laica italiana (se é que é possível desassociar a Igreja da vida dos italianos), os ingredientes produzidos na terra da bota são de altíssima qualidade. É uma questão de honra!

Mas não só de qualidade é conhecida a gastronomia na Itália. A quantidade é algo que realmente impressiona. E olha que pra gente ficar impressionado com quantidade mesmo depois de um ano conhecendo a culinária das Américas é porque a coisa é absurda!

No Peru, por exemplo, conhecemos lugares que costumam tomar um litro de sopa de tripas no café-da-manhã. Na Colômbia, a preparação típica do país que leva arroz, feijão, chicharrón, carne moída, linguiça, banana frita, ovo frito e abacate é servida individualmente em uma bandeja, tamanha a porção. Isso sem falar em nosso querido México, onde somando todas as refeições que um mexicano faz ao longo de um dia, poderia alimentar umas três pessoas em outro lugar do mundo.

Diferente desses países, porém, na Itália existe o ritual de servir os pratos em etapas, muitas etapas, formando ao final, uma refeição de proporção espantosa. Enquanto na América nós costumamos juntar três ou quatro preparações em um único prato e comê-los conjuntamente – a exemplo do nosso feijão com arroz, bife e batata-frita -, o italiano preza pela individualidade. A salada não se mistura com a carne que não se mistura com a massa. Cada um é apreciado separadamente, ao seu tempo.

Aliás, aprendemos rápido que tempo é essencial para fazer uma boa refeição italiana.

No dia de Natal ganhamos um belo presente, fomos convidados a compartilhar o almoço na casa de uma família italiana. Uma experiência fantástica, uma oportunide de ver de perto como é o Natal na Itália.

Chegamos a uma da tarde, conforme o combinado, quando a mesa já estava posta com uma grande variedade de “aperitivos”. Foi pra perto dela que Mariela nos dirigiu depois de nos mostrar o presépio e a linda árvore de Natal montada na sala.

Sem muita demora, a primeira garrafa de espumante foi aberta para brindamos àquele momento. Logo veio um copo de spritz, uma entradinha fria de salmão cru, brusquetas de abacaxi com queijo, azeitonas, queijos, salames, salgadinhos feitos de massa folhada e mais outra taça de espumante.

Enquanto eu tentava equilibrar nas mãos as comidas e bebidas que as pessoas iam oferecendo, Mariela, completamente entusiasmada com a data natalícia, nos perguntou:
– Então, estão curiosos para ver a mesa desse ano?

A minha cara de interrogação disse tudo e eles explicaram que ali tinham apenas alguns petiscos, que o almoço seria servido no porão, um lugar reservado para as festas da família.

Encarei aquela explicação como um aviso e na condição de “investigadora gastronômica” logo tracei uma estratégia infalível para sobreviver provando de tudo até o final do dia: comer o menos possível a nível do solo.

Planejamento perfeito, execução desastrosa. Aprendi que negar comida oferecida por um italiano é mais difícil que fazer mole mexicano. Eles não desistem de te persuadir a comer até que você levanta a bandeira branca. Nem preciso dizer que o meu plano foi abolido em poucos segundos.

Descemos ao porão uns quarenta minutos depois. Na Itália é relativamente comum as casas terem um porão como salão de festas, usado especialmente agora no inverno.

Enquanto observava os detalhes do lugar, lindamente decorado com motivos de Natal, Ylena chamou minha atenção para o cardápio impresso e disposto nos quatro cantos da mesa. Era  uma folha A4 com o título escrito em vermelho: PRANZO DI NATALE 2018.

Logo abaixo, uma lista com treze itens anunciava o Natal mais abastado de nossas vidas. Só de entradas foram sete, isso sem contar o que beliscamos antes de chegar à távola principal.

Frutas com presunto cru deram a largada. Maionese de batatas e atum veio em seguida. Quando os pratos estavam limpos, serviram-nos salada feita de grãos. Naquele momento, achei conveniente avisar a anfitriã que poderia servir o salpicão que nós tínhamos levado como uma pequena amostra da culinária do Brasil. Seguimos com carne crua; queijo fresco com nozes e mel; pimentão assado ao molho de alho e aliche. Vencemos a primeira etapa do almoço por volta da três da tarde com uma massa folhada, recheada de repolho e linguiça. Isso mesmo, colocamos um pézinho na Alemanha no final do primeiro tempo, mas logo voltamos pra Itália depois do intervalo.

Meia hora depois, os que haviam se levantado no intuito de ajudar a gravidade agir no sistema digestivo, foram convocados a se sentar novamente. Era hora de degustarmos o primeiro prato principal. Mariela preparou orecchiette, uma massa curta típica da Puglia, em duas versões. A primeira com um saboroso molho al ragù; a segunda com aliche e um vegetal originário do sul da Itália, conhecido como cime di rappa. Foi a primeira vez que provamos essa espécie de brócolis com grandes ramas e um sabor um pouco amargo que combinou perfeitamente com o peixe salgado.

A essa altura do almoço eu já estava empanzinada até a última célula da minha composição enquanto Vinicius seguia firme e forte no ritmo dos Italianos.

Fizemos mais uma breve pausa para os preparos finais dos pratos que compunham a terceira e última rodada de comida. O cabrito e o coelho estavam no forno. A alcachofra recheada  previamente pronta estava sendo aquecida.

Enquanto isso, aportaram à mesa lichias, tangerinas, amendoins, avelãs e amêndoas, alguns tira-gostos pra não perdermos o embalo.

Natal na Itália
Detalhes da mesa de Natal
Natal na Itália
Caldo de Cappelletti
Natal na Itália
Orechiette ao Ragù | Garrafa de 3 litros de espumante | Cartela de Bingo azarada

Nessa hora eu já havia decretado estado de coma alimentar. Nem água passava mais pela minha garganta. No terceiro tempo eu fiquei apenas de espectadora, fascinada com a facilidade que os italianos tinham de ingerir comida atrás de comida – e também vinho, é claro – sem aparentar qualquer desconforto.

O que teria acontecido com a minha carga genética? Afinal, como bisnetas de italianos eu tinha o dever de honrar as tradições dos meus ascendentes! Infelizmente não logrei o meu intento, não consegui provar de tudo um pouco.

Ao menos o Vi manteve o nome da família e me representou muito bem quando chegou o prato feito com alcachofras que eu tanto gosto e que pela primeira vez na vida recusei, não sem me lamentar.

Mas nem tudo estava perdido. Consegui me recompor a tempo para provar os doces. Já passava das cinco quando abriram uma nova garrafa de champagne e cortaram um bolo de massa branca com muita nata e uma torta de avelãs e chocolate.

Mencionei a travessa com folhas verdes? E a de castanhas portuguesas assadas? Sim, elas também deram o ar da graça em algum momento desse almoço que eu não sei precisar.  

Três horas mais tarde, depois de algumas partidas de bingo em que eu fiquei no vermelho e Vinicius ganhou dois euros, foi anunciado o jantar. Naquela altura, eu já sabia que eles não estavam brincando e que mesmo tendo beliscado tangerinas, lichias e avelãs durante todo o jogo, os italianos iam sentar-se novamente em volta da mesa para comer, mais uma vez.

Antes que a gente seja julgado como folgados, é preciso dizer que o jantar estava incluso no convite que nos foi feito, assim como no cardápio que permanecia na mesa. “Para o jantar, serviremos o tradicional caldo de cappelletti e cotechino com purê”, dizia a frase logo abaixo do desenho do papai noel.

Depois de traçar os pratos anunciados, teve gente que ainda pediu repeteco do que havia sobrado do almoço. Nosso salpicão agradou a italianada e voltou a circular na mesa.

Era 23 horas quando a festa terminou e voltamos para casa.

Em resumo, foram dez horas comendo, conversando e celebrando a vida em volta de uma mesa.

Depois disso, com conhecimento de causa eu digo aos que querem manter a reputação de bom anfitrião: na presença de um italiano, não esqueça de dobrar o cardápio.

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