O céu parecia uma pintura. A hora que o sol nasce é pra mim o momento mais precioso do dia. Poder acompanhar esse momento da janelinha do nosso carro, despertando os sentidos enquanto ele toma conta do horizonte é simplesmente incrível.
Talvez acampar não seja a sua praia, talvez praia não seja a sua vibe (como não é muito a nossa), talvez sua vibe seja mais um hotelzinho bem confortável. E tudo bem. Mas tente uma única vez na vida passar a noite em um lugar sem ninguém por perto, bem perto da natureza. Não precisa abrir mão de todos os seus confortos, mas tente se desligar um pouquinho do celular e olhar ao redor quando despertar. Acorde cedinho, ainda um pouco escuro e se dê dez minutos. Só dez minutos apreciando e encarando o horizonte, vendo a escuridão virando luz e o silêncio ganhando o som dos pássaros.
É quase impossível fazer isso no dia-a-dia, sabemos. Entre abrir os olhos e estar no trabalho quase não dá tempo para escovar os dentes. Mas faça um favor a si mesmo e tente isso uma vez. Apenas faça, não lhe custa nada! Não é possível viver uma vida inteira sem ter apreciado com tranquilidade o amanhecer de um dia.
Despertos e inspirados, estávamos prontos para encarar mais estrada! Era dia de chegar ao Valle de Guadalupe, a região vitivinícola do México. Mas antes teve muito deserto, muito calor e muita aventura.
Passamos por mais posto do exército que pediu para revistar o carro outra vez…justo quando fazíamos um lanchinho, uma tortilha com atum, pra enganar a fome antes de almoçarmos. Vinicius saiu do carro para abrir nossa casa para os soldados, mas eu me mantive ali, comendo meu taco como se estivesse na cozinha da minha casa.
Não sei se por isso, mas só deram uma olhada dentro da nossa bagunça no carro, fizeram algumas perguntas e nos mandaram seguir. Era a última revista militar antes de entramos na região mais desértica do México.
Passamos muito calor enquanto pegamos 30 km de subidas íngremes com o ar condicionado desligado. O mostrador de temperatura do motor chegou a 88°C e não quisemos forçá-lo ainda mais. Era uma da tarde e o sol do deserto estava a pino. Não sabemos ao certo mas a sensação térmica deveria estar acima dos 45°C.
Nesse trecho, vimos pelo menos uns quatro carros no acostamento com os capôs abertos e não queríamos ter o mesmo destino. Depois do nosso infortúnio com o motor lá no Panamá (clique aqui para ler como foram os 10 dias que moramos em uma oficina mecânica), ficamos bem mais ligados com os sinais que o carro nos manda.
Seguindo a menos de 50 km/h, com o GPS em mãos para saber quanto de subida ainda tínhamos pela frente, descobrimos que deixar as janelas do carro fechadas era menos quente que deixar o vento escaldante entrar.
Foi mais de uma hora dirigindo devagar e sofrendo com o calor, mas o que víamos não deixava de ser impressionante. Um mar de areia, pedras e coisa alguma que atingia o céu no final do horizonte.
Nos demos conta que é por essa região que muitos mexicanos e outros latino-americanos arriscam suas vidas para cruzar a fronteira com os Estados Unidos. Ninguém, ninguém nesse mundo deveria viver em uma condição subumana ao ponto de querer enfrentar um risco tão grande para ter uma vida melhor.
Por outro lado, ninguém tem o direito de ceifa-lhos da esperança de um futuro digno. Se há coragem para enfrentar o medo, há vontade de viver. Ainda que nos pareça insanidade cruzar o deserto, o que seria mais mortal: o conformismo que paralisa ou o movimento gera esperança?
Reflexões à parte, chegamos em Tecate quase três da tarde, sãos e salvos, nós e o carro. A cidade que fica na fronteira é cercada pelo muro que divide os países da América Latina da América anglo-saxônica. A cidade também é sede dá empresa de mesmo nome que fabrica a principal cerveja comercial do México, Tecate.
Além desses dois detalhes, nada mais nos chamou atenção nesse pequeno lugar que também está catalogado entre os mais de cem pueblos mágicos do México. Mesmo assim, paramos para almoçar em um dos poucos restaurantes que pareciam servir comida mexicana de verdade e não para americano ver.
Vinicius pediu uma enchilhada suíça, um prato bem tradicional que ainda não tínhamos tido chance de experimentar. Eu que queria uma salada bem apetitosa ao estilo daquela que comemos dias atrás, não botei fé no cardápio do restaurante mexicano e me rendi ao subway (que tem opção de transformar o sanduíche em salada!).
Em menos de uma hora estávamos em Valle de Guadalupe. Seguindo as placas indicativas de “Ruta Del Viño”, chegamos fácil ao RV Parking Rancho Sordo Mordo, um camping próprio para motorhomes mantido por uma escola de crianças surdas e mudas.
O lugar estava praticamente vazio e ficava entre a rodovia e parreiras de uvas. Ninguém tomava conta do lugar, havia apenas um aplaca com dizeres em inglês: Seja bem-vindo, escolha seu lugar para acampar e logo entraremos bem contato.
Será que atravessamos a fronteira e chegamos mesmo aos EUA? Não, ainda não, mas uma vez mais vimos que a cultura americana é muito presente nessas bandas.
Pois bem, nos acomodamos no ponto em que havia uma mesa de piquenique e sombra. Ao sair do carro uma grata surpresa: vento fresco vindo do Pacífico que estava a menos de 40km dali.
Era bem o que queríamos: tranquilidade, clima fresco e um bom ponto de apoio para passarmos uns dias conhecendo a principal região produtora de vinho do México.