É minha gente. Quem está na chuva é pra se molhar! Então saquemos as galochas e nos joguemos de vez nas águas turbulentas dos reparos mecânicos.
Encontrar um mecânico de confiança no Brasil já é uma missão difícil; demanda investigação e sobretudo recomendação alheia. Estando num país estrangeiro, então, a coisa complica ainda mais.
Por sorte havíamos conhecido Bobby, o panamenho dono do refúgio onde passamos uma noite dias atrás (leia o registro do dia 194!). Bobby costuma viajar pelas Américas de moto e sabe bem o que é ter problemas mecânicos na estrada. Ele mora em David, a maior cidade do Panamá depois da capital e foi pra lá que levamos nosso carro.
Saímos às seis da manhã da ilha de Bocas del Toro, pegamos o barco até o continente e fomos caminhando até a oficina onde deixamos o carro na quinta-feira anterior.
Contratamos um guincho para levar o carro de Almirante à David, o que nos custou uma fábula, mas como haviam fortes indícios de que o problema seria no motor – o coração do carro -, não quisemos arriscar deixá-lo nas mãos dos mecânicos que rebocaram nosso carro até Almirante (que, para sermos sinceros, não nos transmitiram muita confiança).
Foram cinco horas de uma lenta viagem, cruzando a serra com nossa casinha na garupa do guincho, até chegar ao outro extremo longitudinal do país. Em David, além de termos um mecânico de confiança de nosso amigo Bobby, haveríamos de encontrar por lá as peças necessárias para o reparo.
[O futuro nos mostraria que encontraríamos bem mais que isso em David].
Chegamos perto das três da tarde. Na oficina só estava Chinito, o proprietário, e ninguém mais. A oficina não estava funcionando normalmente porque era feriado na cidade que tem como patrono São José.
Vendo que nada seria feito ainda na segunda-feira, sem perder tempo Vinicius acordou com Chinito que ajudaria a fazer os reparos para agilizar o serviço. Em seguida sacou as ferramentas que carregamos no carro e, com a supervisão de Chinito, começou a desmontar as peças necessárias para chegar ao motor.
Eram tantas peças e parafusos que eu desconfiava ser impossível colocar tudo de volta outra vez.
Chinito deixou que ficássemos “hospedados” na oficina. Apesar de não ter um escritório, nem mesmo chuveiro, poder ficar na oficina significava economia. E haveríamos de economizar muito para poder manter o orçamento.
Assim passamos os dias que se seguiram enquanto o carro estava na mesa de cirurgia: fazendo nossa comida em um cantinho improvisado da oficina, comprando mantimentos no mercadinho chinês da esquina, trabalhando com o computador apoiado sobre as pernas e tomando banho de mangueira todos os dias depois que o expediente da oficina encerrava.
Foram 10 dias vivendo vinte e quatro horas a rotina de uma oficina mecânica. Por sorte os meninos eram muito educados e o ambiente que poderia ser hostil a uma mulher, era em verdade não mais nem menos hostil do que os lugares em que já trabalhei. (Meninos falam bobagem em qualquer lugar do mundo. Meninas também.)
A mecânica foi passada de pai pra filho, de Chino para Chinito. Chino pai ainda trabalha todos os dias na oficina. A neta, estudante de engenharia industrial, adora mexer nas motos e passa as tardes por lá também. A ausência de posters insinuantes – tão usuais nas paredes da oficinas -corroborava, ao menos para mim, de que estávamos em um ambiente familiar.
Na terça-feira, dia 20 de março, Vinicius passou o dia inteiro desparafusando peças para soltar o motor do carro. Ao fim do dia, com graxa dos pés à cabeça, escutou o veredicto do mecânico: a bomba de óleo deixou de lubrificar o motor que acabou aquecendo e danificando algumas partes. Não, a luz do painel não acendeu. Quando o carro morreu não havia nenhum sinal de anormalidade. O termômetro extra marcava 85ºC; água e óleo também estavam no nível normal.
Na quarta-feira, quando a luz do dia permitia ver com maior precisão o que havia ocorrido, relacionaram o que seria necessário trocar ou retificar e tivemos ao menos uma boa notícia. A parte de cima do motor não apresentava nenhum dano. Assim partiram em busca de um torneiro mecânico.
A previsão para o serviço do torneiro foi de 24 horas e o compromisso foi honrado. Nada mal. Vinicius passou o dia lavando o motor, deixando ele brilhando pra receber a peça retificada e as peças novas que foram compradas no dia seguinte.
Com as peças em mãos, começaria a montagem do motor. Começaria… uma das peças não serviam ao modelo do motor da nossa toyota. O atendente da loja de autopeças se confundiu e mandou a peça errada. A peça certa, entretanto, não foi tão fácil conseguir. A solução então foi encomendá-la também ao torneiro.
No sábado, com todas as peça em mãos, Chinito, o mecânico gente boa que deixou a gente ficar hospedado na sua oficina, começou o árduo trabalho de montar novamente o motor. Nós acompanhamos tudo de perto e foi uma experiência e tanto ver a ciência e precisão que há por trás de um motor.
Já era noite quando o serviço de montagem ficou pronto. Colocar o motor no carro era outra história e essa só seria contada na segunda-feira.
O domingo foi de folga para os mecânicos. Passamos o dia sozinhos. Sim, na oficina. Nesse ponto já estávamos bem habituados ao cenário de “Velozes e Furiosos”, com cheiro de graxa e com calor do sol forte batendo no eternit. Na verdade o silêncio é que incomodou um pouco. As tardes com o ronco dos motores e a seleção de músicas caribenhas de Chinito eram mais divertidas.
Quando a tarde quente parecia longa demais, Chino Pai e Chibe, sua esposa, apareceram na oficina e nos fizeram um convite: jantar em sua casa. Chibe preparou patacones, arroz com pimentões e carne ensopada com gosto de comida de mãe, de vó, de quem prepara o alimento com carinho para a família. Um afago na alma.
A segunda-feira seguinte completou com a previsão de finalização dos serviços para finalmente pegarmos estrada. Bem, não foi exatamente o que aconteceu. O trabalho de colocar tudo de volta demorou bem mais do que imaginávamos. O expediente encerrou sem que todas as peças estivessem encaixadas.
Assim seguimos para mais um dia de oficina, o último! Quer dizer…ainda não foi dessa vez. O trabalho foi concluído, escutamos felizes o sonido do motor funcionando e comemoramos o fim dos trabalhos árduos no motor, mas não deixaríamos a oficina da família Luche na quarta-feira.
É que no meio da nossa confraternização pós expediente terça-feira na oficina, em um discurso com a voz engasgada, Chinito pediu que não nos fôssemos no dia seguinte. Uma mistura de saudosismo antecipado e de senso de responsabilidade, pediu que ficássemos mais um dia para que pudesse testar bem o carro e também para que pudéssemos almoçar juntos.
Nosso tempo no Panamá já estava pra lá de expirado e os próximos compromissos na Costa Rica já estavam agendados, mas não tivemos como negar o pedido de Chinito. Testar bem o carro é vital, concordam? E negar um convite para provar comida típica não é do nosso feitio.
Assim é que nossa chegada à Costa Rica foi adiada uma vez mais. Na quarta pela manhã foram feitos os últimos ajustes. Numa volta de uma hora e meia pelas estradas panamenhas, o carro passou no teste. Tudo certo!!
Felizes e contentes fomos todos à casa de Chibe almoçar galinha caipira feita no fogão à lenha. No Panamá! E estava delicioso! Para acompanhar, o famoso e tradicional arroz com guandu, o grão que parece lentilha e que reveza com o feijão o lugar na mesa do panamenho.
Conversa vai, conversa vem e quando vimos já passavam das duas tarde! Pegar estrada, fazer fronteira (que estava umas duas horas dali) e encontrar um lugar para passar a noite não nos pareceu uma boa ideia.
Resolvemos abusar da hospitalidade e ficar ali até a manhã do dia seguinte. Vinicius ainda aproveitou para lavar o carro. Aproveitamos também para ir até o mercado e abastecer nossa pequena despensa com produtos essenciais para passar os próximos dias no país mais caro da América Central.
No final do dia, para retribuir toda a gentileza da família Luque, preparamos algo bem brasileiro para eles: carne seca com abóbora. E foi assim que nos despedimos do Panamá, o país que nos recebeu de braços abertos, na alegria e na tristeza.
meninos, o que mais me emociona nesses relatos é o carinho de pessoas estranhas que abraçam vcs como se fossem da família.
E essa é sem dúvida a melhor pela aventura, Flávio! Quando saímos de casa não podíamos imaginar a quantidade de pessoas do bem que encontraríamos no caminho. Tem sido uma experiência linda atrás da outra! Obrigado por nos acompanhar!! Abraços!
Que relato fantástico de perseverança e retribuição. Pessoas generosas e de bom coração se atraem entre si. Parabéns ao casal brasileiro e à família panamenha!
🙂 Que delícia saber que você conseguiu sentir pelas nossas palavras um pouco do que vivemos! A experiência foi inesquecível mesmo! Abraços Wellington, obrigado por acompanhar a nossa aventura!! Dani e Vini