“Nem tudo são flores”, já dizia o poeta que deve ter feito uma viagem de volta ao mundo e passado pela cidade de Hermosillo.
A noite até que foi tranquila depois que trocamos de posto de gasolina, mas o calor estava verdadeiramente insuportável. De tempos em tempos acordávamos inquietos e torcendo para a noite passar rápido.
Assim que começou a clarear o dia, levantamos e aproveitamos que tinham nos oferecido o chuveiro dos funcionários do posto para tomarmos uma ducha. E foi às cinco da manhã de uma segunda-feira que compreendi o que Einstein quis dizer com relatividade. Em uma situação normal, o banheiro sujo e cheio de moscas seria mal encarado e renegado. Depois de uma noite suando às bicas, entretanto, o cano com água rala e gelada era como um banho de ofurô em um hotel cinco estrelas.
Banho tomado, café idem, partimos para avançar mais 460 km de estradas boas e ruins. Assim como no dia anterior, as casinhas de pedágio de Sonora continuavam tomadas pela população e, assim, estavam livres para passagem sem cobrança.
Uma hora de estrada depois fomos parados pelo exército mexicano. Fizeram algumas perguntas de praxe e acabamos sendo barrados na triagem. Revistaram nosso carro em busca de armas e drogas. Foi meia hora de uma revista incompleta, mas atenta. Abriram nossos potes de mantimento como o saleiro, o cacau em pó, a canela, o vinagre,…mas não tiveram coragem de abrir todos os 72 potes de temperos que levamos no carro (rs). Revistaram nossa geladeira, nosso armário de roupas limpas e sujas e superficialmente outras partes do carro. Foram muito educados e profissionais.
Situações como essa podem ser um pesadelo pra quem tem sua casa dentro do carro. Entendemos, porém, que estão fazendo o trabalho deles e que especialmente nessa região fronteiriça entre México e Estados Unidos era o mínimo a se esperar. Então, tranquilamente, ficamos conversando com os outros milicos que acompanhavam a revista que deve ter sido entre as mais divertidas que eles fizeram. Quem não fica curioso pra saber o que dois malucos que moram num carro e tem um projeto gastronômico carregam? Estamos certos que eles nunca devem ter visto tantos livros de receitas e culinárias, nem tantas panelas ou temperos num motorhome. A revista acabou depois que encontraram nosso pote cheio de chocolates de Oaxaca.
A partir daí foi admirar a paisagem que alternava entre o árido deserto, plantações de aspargos, azeitonas e vinhedos. Cactus gigantes nos faziam lembrar da nossa passagem pela seca região norte da Argentina há dez anos atrás.
Chegamos em Puerto Peñasco por volta das duas da tarde. O sol escaldante não nos encorajava a sair do carro e pegar uma praia sem sombra de sombra alguma. Deserto de um lado, mar do outro. Assim é o cenário da praia no Golfo da Califórnia, a exceção da pequena orla onde se concentram restaurantes e resorts que atraem turistas do Arizona, Texas e Nevada.
Procuramos por algum lugar para almoçar e não foi fácil encontrá-lo. Adeus aos pequenos postos de comida mexicana. Ali tudo era pra gringo ver. Os cardápios estavam em inglês e em dólares. Mesmo pagando a conta em pesos mexicanos, o troco voltou em dólares. Diante dessa nova realidade, nosso pedido ao garçon foi uma simples porção de nachos da casa.
Alguns minutos depois uma porção de tortilhas fritas vieram cobertas por creme de queijo amarelo processado e artificialmente colorido e saborizado. Aparentemente já havíamos saído do México e teríamos que encarar uma nova cultura gastronômica, por mais pobre e desinteressante que ela fosse.
Lá pelas cinco da tarde partimos para a praia, onde havia mais areia que mar. Algumas famílias mexicanas se divertiam por ali embaixo de tendas, com mesas e cadeiras plásticas montadas para curtirem o dia confortavelmente. Música e comida faziam parte da diversão.
A gente ficou escondido na sombra que o carro fazia e a leitura foi o nosso passatempo. Vinicius até se aventurou pelas águas rasas do Golfo enquanto eu, de castigo, permaneci deitada em nosso air puff, usado apenas uma outra vez durante toda a viagem.
Nessa segunda-feira, a segunda da relatividade, o sol se pôs lindamente depois das oito horas, quando a lua já fazia seu trabalho há algum tempo. E à luz dela, do nosso satélite natural, tomamos banho de chuveirinho, ali mesmo no carro, torcendo para que os vizinhos não se dessem conta do que acontecia do outro lado do nosso mini motorhome.