Dias 299 a 316 – 27 de junho a 14 de julho – Quarta-Feira à Sábado: Vivenciando a Cultura Mexicana em Morélia, Michoacán

A noite na gasolineira (posto de combustível) foi tudo, menos tranquila. O pessoal do turno da madrugada resolveu deixar o rádio no volume mais alto possível e graças a eles agora sabemos quais são os hits de sucesso mais ouvidos no México. Faz parte da cultura mexicana!

Normalmente só isso não tiraria meu sono, mas eu estava com a digestão comprometida depois de tanta comida e alguns pernilongos apareceram para zunirem na minha orelha. Quando vi que já era uma da manhã e não tinha conseguido pregar os olhos, dei-me por vencida. Saquei o celular e comecei a ler um livro novinho, depois de ter acabado a leitura de outro no dia anterior. Sempre preferi os livros de papel, mas eles não me dão a liberdade que um livro digital me dá, ao menos durante a viagem.

Fui largar o celular por volta das quatro e meia da manhã e acabei dormindo umas duas horas apenas, quando já vencida pelo cansaço. Enquanto isso Vinicius dormia e acordava também, sempre que a moça do posto resolvia acompanhar a música em voz alta.

Assim que o dia clareou pegamos estrada com destino a Morélia, estado de Michoacán. Passamos direto pela capital, a Cidade do México, uma das cidades mais populosas do mundo. Desculpem os cosmopolitas, mas somos mais felizes conhecendo San Cristóbal de las Casas, Copoya, Taclochahuya, Teposcolula, Cholula ou  Dolores Hidalgo.

Morélia não é um povoado mexicano, longe disso. A cidade possui cerca de um milhão de habitantes, mas tínhamos um excelente motivo para irmos até lá (além da comida, é claro): visitar Luis Adriano e Laurinha. Conhecemos o jovem casal e sua família em Lima, no Peru, há sete meses atrás. Desde então, estamos sempre em contato com eles que se tornaram mais que amigos; eles são os comandantes do nosso pelotão de anjos da guarda.

tacos mexicanos
Provando os tacos de Morélia na companhia de Laurita e Luis
tacos mexicanos
Tacos de suadero (carne bovina) e Chorizo (linguiça suína)

Nosso reencontro com Grilo, como Luis é apelidado, foi por volta das duas da tarde. Laurita vimos só à noite, depois que saiu do trabalho e quando nos levaram para comer tacos, a street food mexicana mais famosa do mundo.

Contrariando as previsões, eles não nos levaram ao um local simples e no meio da rua para provarmos os tacos, mas em um restaurante com cadeiras confortáveis, ambiente aconchegante e moderno. Antes que alguém pense que a experiência foi menos interessante por conta disso já vamos dizendo que esses foram os melhores tacos que provamos até agora.

Laurita e Grilo nos contaram que, no início, os tacos eram sim vendidos na rua. Depois de um tempo os donos passaram para um pequeno lugarzinho com apenas três mesas. O local vivia sempre lotado. Mais um tempo depois, o restaurante se mudou para um espaço maior, já foi ampliado uma vez e segue em reforma para atender também no piso superior.

Eles que acompanharam todo o crescimento do lugar tem a resposta para tanto sucesso. O sabor continua o mesmo e o preço também e por isso continuam sendo clientes fiéis ao estabelecimento que um dia vendia tacos na rua.

E não é palavra ao vento não. São clientes fiéis mesmo. Dias depois da nossa primeira visita, voltamos lá para comer mais uns taquinhos de suadero, bistek, chouriço, tripas e cabeça de boi.

Não pude deixar de notar nas outras mesas. Apesar de terem outras opções no cardápio como quesadilhas e marías, todos, absolutamente todos, estavam comendo tacos. Alguns já pedem 5 de uma só vez, quase nunca menos que isso. E quase sempre repetem. Pela minha cabeça a pergunta se repetia:

“Como pode um pedaço de tortilha de milho com alguns pedaços de carne picadas fazerem tanto sucesso?”

Bem, das nossas andanças no México e da observação atenta à história, aos lugares e dos comensais de tacos (100% da população do país rs!) conseguimos reunir 7 razões para os tacos serem super desejados pelos nossos queridos mexicanos:

  1.  A alimentação mexicana é baseada no ingrediente rei das Américas, o milho. Tudo leva milho, do doce ao salgado, da sopa ao bolo. O gosto está enraizado na memória gustativa dos mexicanos;
  2. Está geneticamente introduzido no DNA dos mexicanos: devemos comer tortilhas. Então tudo no México começa e acaba com uma tortilha. O café-da-manhã, a comida, o jantar, o lanche. Tudo que é feito com tortilha basicamente faz sucesso por aqui. Eu e Vinicius, que acabamos ficando mais tempo no México que havíamos previsto, já estávamos super acostumados a comer com tortilhas. Uma vez ou outra batia aquela vontade de comer um pãozinho, mas muito raramente. A tortilha ganhou mais dois novos fãs;
  3. A tortilha não só é o acompanhamento principal dos pratos como também serve como talher para comer. A tortilha é cortada e moldada nas mãos num formato de concha e depois é usada como colher para agarrar os alimentos e levá-los até a boca. Imagino que deva ser assim que as crianças aprendem a comer sozinhas no México, segurando uma tortilha e mergulhando em alguma papinha ou mingau feito de farinha de milho;
  4. A preparação mais rápida que vem à cabeça de um Mexicano é rechear uma tortilha. E como Mexicano come muito e o tempo todo, fica fácil saciar o desejo de comer de forma rápida e descomplicada;
  5. Se qualquer coisa dentro de uma tortilha vira um taco, não há nada mas prático e versátil que consiga agradar paladares diferentes. As taquerias em geral oferecem variações com diversos cortes de carne, matando a vontade de quem quer comer tripas, cabeça, peito, perna,… As versões vegetarianas não são tão comuns, mas vem ganhando espaço e cada vez mais adeptos;
  6. Os tacos sempre, sempre estarão acompanhados de algum molho de pimenta, dos mais fraquinhos aos mais picantes…e aí já viu, qualquer coisa que leve “salsa de chile” já tem 80% de chance de agradar os mexicanos;
  7. É possível pedir um, dois, dez tacos. É uma comida que se come sozinho e também que se comparte!

Em resumo, os tacos são herança cultural e reúnem praticidade, diversidade, simplicidade e sabor numa só bocada.

Mas não foi só de tacos que nos alimentamos nesses dias todos que ficamos na companhia de Grilo e Laurita. Provamos muitas coisas mais e cozinhamos muito também! Comemos gaspachos, churritos com verduras e, não poderiam faltar, as famosas paletas mexicanas (comi uma de amora com queijo divina!). Provamos, ainda, duas sopas super tradicionais de Michoacán, em especial do Pueblo Mágico de Patzcuaro, que estavam muito, mas muito boas.

O gaspacho é uma comida bem típica de Michoacán (que não tem nada a ver com o gaspacho espanhol) e foi uma surpresa pra gente. Um prato bem saudável e pasmem, não leva milho nem tortilha. Na verdade é uma salada de frutas e verduras. Por tradição colocam abacaxi, melão, jícama, e pepino. Podem ter ainda melancia e manga. Opa, manga com pepino? Sim e fica bom, vai por mim. Leva sal, suco de limão e, claro, molho de pimenta (pode levar cebola picadinha também!!!). Antes de servir leva, ainda, suco de laranja e queijo manchego (um queijo fresco) ralado por cima.

cultura mexicana
Gaspacho, a salada de frutas e legumes mexicana (que pode levar até cebola!)
cultura mexicana
Aprendendo a comer churritos: salgadinho em palitinho com cobertura de pele de porco cozida e marinada no vinagre, tomate, alface e coentro.
cultura mexicana
Sopa Tarasca: creme de feijão com tomate, muito queijo, abacate, chile pasilla e tortilhas em tiras. Muito boa!
cultura mexicana
Caldo Tlalpeño: olhando assim é mais uma sopa de frango qualquer, mas o queijo derretido e o sabor defumado por conta do chipotle surpreendem o paladar!

Já na cozinha de casa, fizemos frango a parmegiana, esfihas, pizzas, chiles jalapenhos recheados, bolinho de arroz, feijão. Até mole mexicano Vinicius preparou e, olha, ficou muito bom! Comemos uma tonelada e meia de abacates, aproveitando que estávamos no estado de maior produção da fruta de todo o México. Provamos muitos doces típicos também, alguns bem curiosos, como as obleas. Pequenos discos coloridos e docinhos que imitam perfeitamente uma hóstia. É claro que a Igreja e as freiras tem a sua participação nessa tradição.

Provamos também os ates de goiaba, abacaxi e outras frutas, quase sempre muito doce. Nessa lista ainda entrou cajeta, um doce de leite feito com lei de cabra, e mazapán, um marzipan feito apenas com amendoim moído e açúcar, como a nossa paçoca, mas de amendoim natural e não tostado. Bem gostoso!

Gostoso também estava o Chongo Zamorano, a sobremesa que Ester, a mãe de Laurita encomendou especialmente pra gente. Uma espécie de calda de leite talhada, rapadura ou açúcar e canela. A cara lembrava muito uma ambrosia, mas o gosto era bem diferente. Aquele tipo de sobremesa beeeem doce, mas que não enjoa. Um perigo!

cultura mexicana
Mercado de Doces no centro de Morélia
cultura mexicana
Geleias, caveiras e santos: um verdadeiro retrato do México
cultura mexicana
Frutas cristalizadas, cocada e rapadura também são doces típicos mexicanos
A influência da Igreja na culinária: hóstias coloridas são típicos doces de Michoacán
cultura mexicana
Cesta de doces típicos michoacanos

Foi na companhia de Ester e de sua mãe que ainda conhecemos outro doce, ao menos não o conhecíamos com esse nome: Uchepos. São nada mais nada menos que tamales doces ou, abrasileirando o termo, pamonha. E essa foi a entrada de um almoço típico mexicano, que desfrutamos justo quando passava a partida do Brasil e Bélgica, aquela mesma que nos tirou da Copa do Mundo da Rússia.

Derrotas da seleção à parte, nós nos sentíamos especialmente vitoriosos por estar ali na companhia de três gerações diferentes, cada qual com seu ponto de vista sobre a comida típica que provamos: mole com frango e arroz, aporreadillos e tacos dorados.

cultura mexicana
Pamonhas mexicanas doces com creme e queijo por cima: delícia!
cultura mexicana
Aporreadillo é ovo mexido com carne seca e molho de tomate. Acompanha arroz e feijão refrito. Comida simples e boa demais!
cultura mexicana
Vi, Ester, eu, Laurita, Grilo e a abuelita de Lau 🙂

Mas isso não foi tudo!

Nesses dias que ficamos em Morélia teve muita festa. Uma das primas de Grilo se formou e lá fomos nós celebrar com a família Garcia esse momento importante na vida de Betel. A festa começou às duas da tarde. Na mesa, uma variedade de botanas, petiscos de amendoins e churritos com molho de pimenta. Para beber, além de água e refri, whisky, brandy e tequila. Não, pasmem, não havia cerveja.

Às três da tarde chegaram os responsáveis pela comida: os taqueiros. Assim como a galera contrata pizzaiolos para fazerem pizzas em suas casas, aqui no México eles contratam taqueiros que durante três horas não tiveram folga. Serviram centenas de tacos, a grande maioria acompanhado de muito molho picante. Como sobremesa, um grande bolo foi cortado pela formanda e distribuído entre os presentes.

cultura mexicana
Festa de formatura no México: tequila e tacos às três da tarde
tacos mexicanos
As carnes e as tortilhas na chapa pra fazer a festa dos mexicanos

Logo depois começou o agito. Uma junkebox fez a festa dos mais jovens que escolhiam as músicas para o pessoal dançar. Ao som de cumbia, a música tradicional da cultura mexicana, nos pusemos a dançar a aprender alguns passos. Mas foi quando tocou “No rompas más” e “Payaso de Rodeo” que a festa ficou animada. Dos mais jovens aos mais velhos todos se colocaram na pista de dança e sincronizadamente reproduziram a coreografia das músicas que tem uma pegada meio country.

Foi uma tarde super divertida, onde mais uma vez pudemos experimentar de perto a cultura mexicana, suas tradições mais icônicas em um só lugar: família, tacos, tequila e muita música!

Mas esse dia não acabou assim tão bem como começou. Saímos da festa e fomos ao centro de Morélia. Aos sábados, precisamente às nove da noite, um show de luzes e música é apresentado na belíssima Catedral de Morélia. No sábado anterior, a chuva havia estragado o espetáculo. Nesse sábado, entretanto, o tempo ficou firme e pudemos acompanhar o show de luzes e fogos de artificio que junta muita gente no centro da cidade.

Saindo de lá, fomos caminhado até a “Calle del Romance”, um pequeno passo entre construções de pedra que te levam a uma pequena fonte. A meia luz, as primaveras floridas, os casais de mãos dadas passeando deixavam o clima bem romântico de fato. Mas esse clima não durou muito tempo e a responsável por acabar com ele fui eu. Ou melhor, foi um degrau de 3 cm. Dei um passo em falso para trás e virei o pé de uma forma que pude sentir todos as minhas articulações se moverem como um oito. Instantaneamente inflou uma bola de tênis ao lado do meu tornozelo.

Vinicius correu para buscar gelo no restaurante próximo o que ajudou muito a conter a inflamação. Ainda assim, pelo inchaço e pela dor, sabia que a brincadeira custaria um certo atraso na nossa viagem.

cultura mexicana
Pelas ruas de Morélia com Lau e Grilo
cultura mexicana
O espetáculo de luzes na Catedral de Morélia
cultura mexicana
Passeando pelas ruas e praças de Morélia antes de torcer o pé :/
cultura mexicana
Batendo uma “chapa”: sem fraturas

Paciência!

Por sorte estávamos muito bem hospedados, não estávamos dormindo em um posto de gasolina ou um camping qualquer. Nos dias que se seguiram fiquei paradinha, colocando gelo e tomando anti inflamatórios. E por conta disso, nossa partida de Morélia foi adiada.

Mas como nada nessa vida é por acaso, acabamos ficando tempo suficiente para comemorarmos o aniversário de Grilo e, mais uma vez, poder celebrar a vida de uma forma bem tradicional mexicana.

Para comemorar, Vinicius preparou um Mole, a receita mais tradicional do país, de dar inveja a muito mexicano! Além de ser o prato mais típico do México é um dos mais difíceis de fazer também  por conta da quantidade de ingredientes. Com a receita de Alexandra – a mãe de Grilo – em mãos e com os ingredientes dispostos na mesa, Vinicius começou o preparo do mole no dia anterior ao aniversário.

Pacientemente ele foi assando, fritando, cozinhando, escaldado, peneirando, batendo as sementes, os chiles, os grãos e os legumes. Mais de cinco horas depois, por volta da uma da manhã, o mole estava finalmente pronto, e lindo, e saboroso. Pra estufar o peito e dizer: “eu preparei mole mexicano”.

Sim, porque muitos mexicanos não fazem nem ideia de como se prepara e outros muitos não se arriscam a fazer, já compram a massa pronta só para diluir em água ou caldo quente, como vimos em vários mercados públicos por aqui.

cultura mexicana
Finalizando o Mole: desafio culinário concluído com sucesso

A festa de aniversário de Grilo foi super animada, com muita música, dança, comida e bebida, bem do jeito que os mexicanos ( e os brasileiros) gostam.

Bem, isso foi um breve resumo de tudo que vivemos em Morélia em um pouco mais de duas semanas. No meio de tanto agito, de tantos sabores, tiveram os jogos do mundial, eleições presidenciais no México, muito trabalho e a lesão. Teve também muito carinho e muita confraternização. Foi uma oportunidade incrível de vivenciar a cultura mexicana no dia-a-dia e também em ocasiões muito especiais. Morélia, aguardem, certamente voltaremos algum dia!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *