Nossa passagem pela região de Veneza foi brindada por uma experiência gastronômica inesquecível em Mirano
A ideia de se perder caminhando pelas ruelas estreitas e de apreciar os canais de Veneza foi abandonada assim que a previsão do tempo indicava temporais com chuva de granizo.
E a previsão acertou em cheio.
Granizo, vento e muita chuva nos acompanharam em toda nossa travessia pelo Vêneto, já de volta à Itália, depois de uma breve passada pela Eslovênia, Croácia e Bósnia.
A visita à charmosa Veneza, um dos principais destinos turísticos do mundo, ficou para uma próxima oportunidade. O que não poderíamos deixar passar em absoluto era a oportunidade de experimentarmos a culinária local, nem que chovesse canivetes.
Desviamos então para Mirano, a 20 km da cidade mais famosa da província, e fomos surpreendidos com uma pequena cidade cheia de vida. Os bares do centro ficaram tomados ao entardecer da sexta-feira, bem no horário em quando saímos da biblioteca municipal depois de um dia de muita pesquisa. Já os italianos relaxavam depois de uma semana inteira de trabalho tomando uma taça de Spritz.
O drink de cor laranja fosforescente que ganhou o mundo nasceu ali mesmo, no Vêneto, porém numa versão bem diferente daquela que conhecemos hoje.
“O Spritz era feito apenas de vinho branco e água com gás”, nos contou Silvano Libralesso, da Trattoria Il Sogno, enquanto brindávamos com a própria bebida na companhia de todo o staff e do sócio e chef do restaurante, Marco Formenton.
Localizada entre Veneza e Pádua, em meio à “campagna veneziana”, a Trattoria Il Sogno é um lugar tranquilo, muito bonito, extremamente acolhedor e com um cardápio recheado de preparações voltadas às tradições culinárias do território.
Logo vimos que havíamos escolhido o lugar certo para conhecermos um pouco mais da gastronomia típica veneziana que é, em realidade, antiguíssima. “Há registros de receitas escritas de 1300 d.C”, contou-nos Silvano, que além de cuidar da parte administrativa e do salão do restaurante, também leciona sobre a cozinha típica da região.
Uma receita veneziana que remonta àquela época, mencionou o professor, é o savor de gamberi, um prato hoje pouco conhecido, acrescentou ele. Nós ainda não tivemos a oportunidade de prová-lo, mas uma preparação que leva camarões, amêndoas e inúmeros temperos como curry, cúrcuma, anis e pimenta deve ter o seu “que” de especial, não é mesmo? (Voltando ao Vêneto vamos à caça do savor de gamberi!)
A castradina é outro preparo centenário que entrou para a nossa lista de pratos a serem provados no Vêneto. É uma sopa bem encorpada, feita de pernil de cordeiro salgado e defumado, folhas de repolho, cebola e vinho. Também ficamos só na imaginação e resolvemos antes mesmo de nos sentarmos à mesa da Trattoria: decididamente voltaremos ao Vêneto.
Já nos dias atuais, um dos pratos tradicionais mais simbólicos do território é o pato. O pato era uma ave doméstica e de fácil elaboração e, por isso, até hoje, nas festas do Vêneto ele sempre está presente. “É o prato que não falta em datas importantes e principalmente em festas populares. Nós o fazemos assado, recheado com fígado do próprio pato, como manda a tradição”, disse Silvano.
Ainda na linha de pratos tradicionais venezianos que são encontrados até hoje está o moeche: o caranguejo da Lagoa de Veneza que é frito após empanado em ovo e farinha.
A particularidade desse prato está no próprio caranguejo, que deve ser catado no início do outono ou da primavera, quando está na fase de troca do exoesqueleto. Como essa armadura é bem rígida, o caranguejo precisa trocá-la para continuar crescendo. Os dias em que o caranguejo perde a velha carcaça e inicia o processo de crescimento de uma nova são os ideais para os moeches irem para a panela, já que estão macios e podem ser provados por inteiro, sem dificuldade.
Ainda com a palavra o professor, ele nos contou que a característica gastronômica essencial do território está ligada ao mar e a todo comércio desenvolvido na região na época das grandes navegações. Entre as heranças deixadas na culinária pelos povos do oriente que aportavam no Vêneto e ali trocavam mercadorias, as especiarias são as mais evidentes. “Canela, coentro, cardamomo e anis estrelado” são algumas delas, enumerou ele.
Mas as navegações tiveram outro papel importante na história da culinária local.
Os venezianos sempre foram grandes navegadores, passavam grande parte do tempo em alto mar e, por necessidade, tiveram que desenvolver maneiras de conservar os alimentos para que eles durassem o tempo que levava as longas viagens de navio. “O Saor é uma dessas maneiras”, citou Silvano que deixou a encargo do sócio a preparação do prato típico.
Saor: o sabor veneziano tradicional
Saor – em poucas palavras – é uma marinada de aceto com cebola, mais precisamente de cebola branca de Chioggia, como fez questão de frisar Silvano. A cebola proveniente da cidade que fica bem pertinho de Mirano e Veneza apresenta uma baixa acidez e mantêm a textura crocante mesmo com o cozimento, sendo por isso ideal para a preparação do Saor.
Mas o ingrediente chave da preparação é o mesmo o aceto – o vinagre de vinho – muito presente também em outras receitas típicas, a exemplo do nervetti acebolado (tendões bovinos marinados no vinagre!). O vinho e os vinhedos fazem parte da cultura e da paisagem do Vêneto, lembraram os italianos e por isso todos os subprodutos da uva fazem parte da cultura gastronômica da região.
O aceto é resultado da ação de bactérias sobre o etanol presente no vinho e em outras bebidas alcoólicas fermentadas.
O costume de utilizar o vinagre para conservar os alimentos nasceu como necessidade no passado e hoje permanece como técnica culinária utilizada em vários ingredientes diferentes. “O saor pode ser feito tanto com carne, como com vegetais, tais como a abóbora e o radicchio. Pode ainda ser feito com sardinha, camarão ou mazzancolla (camarão imperial)”, acrescentou o chef.
Já na cozinha do restaurante, Marco nos ensinou a preparar o Saor com galinha padovana, uma raça pequena, própria da terrinha, que tem uma característica muito particular: uma crista formada de um chufo de penas arrepiadas, uma bela exemplar da tribo punk dos galináceos.
A preparação que leva também óleo, cebola, sal, vinagre, vinho branco, pimentão, uvas passas e pinolis, é fácil e rápida, mas a dica é consumi-las pelo menos 24 horas após o preparo. “O saor feito hoje ficará ainda melhor daqui a três dias”, lembra Marco.
Aqui na Itália o prato é servido frio, como entrada, junto com pãozinho e galbetti, os pequenos grissinis do piemonti (€). No Brasil o saor pode usado de acompanhamento, substituindo um salpicão ou ainda uma maionese.
A receita estará nos próximos posts! Fique de olho!
Outras entradinhas típicas do Vêneto
O saor abriu o apetite e seguimos nossa cruzada pelos sabores do Vêneto experimentando outras delícias do cardápio da Trattoria Il Sogno.
Ainda como antipasto, provamos o que Enrico de Simone, a mão direita de Marco na cozinha, chamou de antipasto composto. No prato, quatro preparações diferentes nos introduziram aos sabores formidáveis do Vêneto!
Para começar, fomos de alcachofra assada ao forno com queijo Taleggio, típico da região, e grana padano para dourar (7€). Dou-me a liberdade de não comentar a preparação, já que a evidência dos ingredientes o sabor só poderia ser algo sensacional.
Quer saber como é feito o queijo Grana Padano? Tem post aqui no blog!
Partimos para a linda flor de abóbora assada e fartamente recheada com batata, queijo taleggio, ricota e pedacinhos de menta que deixaram o prato mais refrescante.
O queijo Taleggio é um queijo DOP de pasta mole, bem cremoso, com sabor prevalentemente doce. Inicialmente produzido na Lombardia, a zona de produção abrange hoje também o Piemonte e o Vêneto.
Seguimos com aspargos verdes e brancos com carpaccio de vitelo e salsa tonnata (8€): uma preparação saborosíssima e cheia de detalhes preciosos. O carpaccio, por exemplo, é marinado por 72 horas com sal, açúcar, suco de laranja, suco de limão, pimenta e zimbro. Já os aspargos cultivados nessa região tem um sabor diferenciado, naturalmente salgado.
Para unir os ingredientes, Enrico fez uma maionese com atum e alcaparras que já havíamos provado e aprovado antes em outras regiões da Itália. A combinação fica sutil e combina muito bem tanto com carne crua como com carne cozida.
O carpaccio é outra preparação que tem DNA veneziano. Conta a história que ele foi servido pela primeira vez à condessa Amalia Mocenigo que por recomendação médica precisava comer carne crua para suprir sua deficiência de ferro. O prato foi preparado no Harry´s Bar, em Veneza, em 1950. Em geral, a carne utilizada para fazer o carpaccio é chamada de girello, a parte superior da coxa que é magra e livre de nervos.
Por último, provamos uma preparação exótica aos nossos olhos: tendões bovinos marinados com cebola (6€), praticamente um saor. Enrico explicou que os nervos são deixados na água e sal por um tempo. Depois a água é escorrida e os tendões, cortados em cubinhos, são deixados imersos em cebola cortada à julienne, aceto de vinho branco, pimenta, sal e azeite por uma hora.
Na hora de provar, cebola e tendões se misturam e quase não se distingue um do outro até leva-los à boca. Os nervos tem uma consistência mais rígida, como se pode imaginar, mas a marinada trata de conferir um pouco de maciez e sabor à parte do boi que hoje dificilmente chega à mesa das casas.
Provando receitas tradicionais do Vêneto
Eu já estava satisfeita – muito satisfeita! – com o que havíamos provado até então, mas a nossa viagem pelos sabores do Vêneto estava apenas no começo.
Marco preparou um prato que não poderíamos ter provado em nenhum outro lugar. Ele trouxe pessoalmente a nossa mesa um belo prato de
espaguetti “al dente” com zótoli (zotoi) (8€), um fruto do mar bem pequenininho, que nunca havíamos visto antes. “É um cruzamento de lula e seppia, uma espécie que se encontra na Lagoa de Veneza apenas na primavera”, explicaram os meninos da Trattoria. Dava para a comida ser mais local?
O chef preparou o zótolli com tomates e deu um toque com um tempero que na Itália do norte passa quase despercebido: pimenta! A cada gafada um sabor picante contrastava com o doce do tomate italiano, a consistência perfeita da massa e o sabor pungente do Zótolli. Daqueles pratos que dificilmente provaremos em outro lugar – em razão da sua particularidade – e de que não esqueceremos jamais!
O nosso almoço ainda teve outros ingredientes vindos do mar: bacalhau e seppia. Apesar de mais familiarizados com esses sabores, os pratos novamente nos surpreenderam. O bacalhau alla Vicentina (13€) é mais uma daquelas preparações demoradas que certamente valem a pena o esforço. O bacalhau seco é deixado de molho por dois dias e depois feito no forno a baixíssima temperatura, com aliche, azeite extra virgem de oliva, leite, queijo grana e salsinha. O resultado é maravilhoso!
Já a seppia (13€) – que se parece com a lula, mas se trata na verdade de outra espécie de molusco – foi preparada na tinta preta que porta o sabor de mar ao prato.
Curiosidade: a tinta negra retirada da sepia, utilizada para colorir a massa e que em alguns lugares do mundo custa uma fábula, chega a ser descartada nessa região tamanha a abundância do insumo.
Para acompanhar os pratos, Marco serviu polenta branca, feita com o milho pérola, uma variedade muito utilizada em algumas microrregiões do Vêneto e que não poderia ficar de fora da nossa pesquisa pela gastronomia veneziana na prática.
Parêntesis: Um pulinho em Roma
Em meio a todas as delícias tradicionais do Vêneto, Marco nos presenteou com uma das suas preparações mais elogiadas: cacio e pepe (7€). O prato de origem romana ganhou a Itália e nas mãos de Marco ganhou uma versão de rezar em voz alta! O chef usou Cacciocavalo Podólico no lugar do tradicional queijo pecorino. O Cacciocavalo podólico é um queijo de leite de vaquinhas de raça autóctone, de elaboração difícil e sabor único. A matéria-prima de excelente qualidade comandou os sabores no prato e nos fez crer que será um grande desafio provar um cacio e pepe melhor do que esse em Roma. Veremos!
Os vinhos do Vêneto
É claro que em um bom almoço italiano não pode faltar vinho na mesa. Nossos pratos foram harmonizados com perfeição por Silvano, com vinhos emblemáticos da região.
Antes mesmo das entradinhas, brindamos à gastronomia veneziana com um delicioso Prosecco Gregoletto, um espumante fresco, de bolhas finas e persistentes.
O Prosecco DOC é o espumante italiano produzido nas províncias de Vêneto e de Friuli Venezia-Giulia, a partir da uva branca Glera.
Os antepastos tiveram a companhia de um vinho branco elegante e equilibrado: Incrocio Manzoni da Case Paolin. O vinho é obtido do cruzamento do das vinhas rieseling renano e pinot bianco e virou uma das marcas registradas do Vêneto.
O Incrocio Manzoni nasceu de uma série de experimentos feito pelo professor Luigi Manzoni, na década de 30, com o objetivo de promover o melhoramento genético das vinhas cultivadas na região.
Já o vinho que acompanhou nosso espaguete picante com zótoli foi um tinto Colli Euganei Rosso DOC, da Ca´Orologio, feito de e merlot (60%), cabernet (35%) e barbera (5%) e envelhecido por 24 meses, sendo que 12 deles em barris de carvalho francês.
“Esse é o tipo de vinho que temos o prazer de ter em nossa carta”, disse Silvano, enquanto nos apresentava o rótulo e nos contava que ele é produzido por Maria Gioia Rosellini, a “senhora do vinho”.
“Esse é o tipo de vinho que gostaríamos de ver a produção de perto!”, dissemos nós dois depois de darmos o primeiro gole. Anote o nome: Colli Euganei Rosso da Ca´Orologio é o vinho que você deverá provar na sua passagem pelo Vêneto.
O Spritz: a bebida exponencial
Não poderíamos falar de vinho no Vêneto sem falar do Spritz. Como já antecipamos linha antes, sua versão original era bem mais simples que aquela encontrada hoje nos bares e restaurantes da Itália e do mundo.
A palavra Spritz vem do austríaco spritzen, quer dizer “borrifar, acrescentar água” e acabou ficando conhecida no território na época em que o nordeste da Itália era dominado pelo Império Austro-Húngaro.
Diz a lenda que os soldados austríacos – acostumados a consumir apenas cerveja de baixa graduação alcoólica – pediam para colocar água no vinho para diluir a quantidade de álcool presente nos vinhos produzidos nos Vêneto.
Hoje, o drink que ganhou todo o território italiano e boa parte do mundo numa velocidade exponencial, é feito de água com gás, vinho Prosecco e Aperol ou Campari, à escolha do cliente. A versão com Aperol fica mais doce, enquanto que de Campari fica mais amarga.
Um pouco de gelo refresca a bebida e um pedacinho de casca de laranja dá o toque final.
E os doces?
Italianos gostam de doces indiscutivelmente. Ele está no café-da-manhã e não falta após as refeições. O doce italiano, entretanto, não é exageradamente adocicado, como vimos no Brasil e também nos nossos países vizinhos.
A dose de açúcar – extraído geralmente da beterraba – é comedida. Nosso almoço acabou com três doces diferentes: um crem brulèe de café brasileiro
(4€) de sabor intenso muito gostoso; um mousse de pistache de Bronte com crumble de amêndoas (5€), duas das castanhas mais icônicas da Itália e, por fim, zaeti, um biscoito típico do Vêneto, feito com farinha de milho e uva passa, acompanhado de vinho passito (5€), um vinho licoroso, doce, feito com as uvas do final da colheita, perfeito para finalizar uma refeição digna de aplausos.
Se ficamos chateados que a chuva não nos deixou visitar Veneza? Nem um milímetro cúbico! E quando o sol brilhar e estivemos a caminho de Veneza, não temos dúvida: uma parada em Mirano estará sempre em nossos planos.
Savor de gamberi e castradina: vocês não escaparão da próxima vez!
[su_box title=”Trattoria Il Sogno”]
Via Vetrego, 8/1 – Mirano, Vêneto, Itália
www.trattoriailsogno.com
Aberto todos os dias para o almoço e jantar, com exceção dos domingos à noite e às segundas-feiras.
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comida italiana não tem igual.É de dar água na boca,neta de italianos de primeiro grau e conheço boa parte dessas delícias!!!!
Que abençoada, Sirlene!! Nós somos apaixonados pela culinária italiana e nos tornamos mais fãs a cada dia. Obrigada pela visita no blog!! Feliz Ano Novo pra vc!
Estarei sempre visitando,adoro…Abraços.
Abraços, Sirlene!