Como os Monastérios influenciaram a atual confeitaria siciliana
Chegamos à Sicília obstinados a aprender a fazer um dos nossos doces sicilianos preferidos. Desde que provamos o cannolo siciliano no Bronx há uns sete anos atrás, ficamos obcecados pelo doce.
A crosta crocante envolvendo a ricota de ovelha doce e cremosa feita por uma família de italianos que partiu para a América era de um sabor absurdamente bom. Nosso azar é que na ocasião compramos os cannoli para levar e só fomos comê-lo alguns passos à frente. Se tivéssemos experimentado na hora, teríamos comprado caixas daquela maravilha. Aquele sabor de cannoli aquecendo nossa alma no inverno gelado de Nova York nunca saiu da nossa memória.
Mas essa vez era diferente.
Não estávamos a passeio, não fazia frio e a paisagem era bem diferente daquela dos Estados Unidos.
Muito melhor.
Estávamos investigando a culinária mundial e chegávamos a Sicília, a terra onde foi inventado o cannolo.
Confesso que não deixamos para provar o doce siciliano só na ilha. Estando na Itália, eu mesma pude comprar a ricota de ovelha, os canudos já prontos e fazer o meu próprio cannolo.
Era bom, mas não o suficiente.
Nós queríamos a receita completa, do início ao fim. Apesar de não encontrar muita coisa na internet sobre o assunto, ao menos em português, estando na Sicília a coisa seria mais fácil, certo?
Errado!
A receita de um bom cannolo é mais secreta que a fórmula da Coca-Cola. Não é que se trata de uma marca registrada, de uma patente ou monopólio. Cannoli estivem vários, por todos os lados, mas cada um tem a sua receita e ela não é dividida com ninguém.
E não é só do cannolo não. Pela Sicília, receita é como pergaminho escondido, enterrado e fechado a sete chaves. Contou-nos uma das chef que conhecemos na Sicília que ao pedir uma receita à tia de seu marido, ela teria passado os ingredientes e o modus operandi de bom coração, mas de forma errada.
Agora imaginem só: se para a família a receita é entregue de forma equivocada, quem dirá para nós, forasteiros da América do Sul.
Depois de fazermos contato com várias confeitarias sem sucesso, inclusive com a intermediação de sicilianos, estávamos a ponto de desistir. Da Sicília, pensamos, levaremos apenas o nome dos doces, uma foto e o sabor deles na memória.
Contudo, no nosso último dia de Sicília, já na capital Palermo e prontos para embarcar o carro rumo à Nápoles, uma intervenção divina colocou Maria Carmela Ligotti em nosso caminho.
Presidente da Cooperativa que dá vida à confeitaria Il Segreti del Chiostro, ela nos contou um pouco da história dos doces conventuais e foi aí que descobrimos a origem de tanto mistério em relação à receita dos doces sicilianos.
“Esse Monastério nasce no início de 1300 e é escolhido pelas famílias nobres parlemitanas e sicilianas que tinham o ‘problema’ com a primogenitura”, introduziu a conversa M. Carmela que teve o pátio do Monastério de Santa Caterina d´Alessandria como cenário.
Ela nos contou que os nobres tinham o costume de deixar toda a herança ao primogênito para que ele mantivesse o poder da família. Quanto mais bens tinham, quanto mais ricos eram, mais poder detinham. Por isso não dispersavam os bens entre os inúmeros filhos, mas concentravam a riqueza nas mãos do filho que nascia primeiro.
“Os filhos restantes, homens ou mulheres, que não fossem os primogênitos, eram mandados aos Monastérios ou Conventos, sobretudo as mulheres. Tinham uma vida monástica forçada”, contou-nos Maria Carmela, frisando que, na época, a clausura era uma regra extremamente rígida.
“Esses Monastérios, sobretudo os dominicanos e beneditinos, eram formados de pessoas de origem nobre, que (…) traziam os seus dotes e também feudos (…). Quanto mais nobres, mais ricos eram também os Monastérios. O de Santa Caterina era um dos mais ricos, senão o mais rico de Palermo, justo porque era escolhido pela nobreza mais importante. E, possuindo os feudos, tinham toda a matéria-prima fundamental para cozinhar, seja uma cozinha salada que uma cozinha doce”, esclareceu a presidente.
Os doces, no entanto, acabam assumindo uma importância mais forte, justamente porque ligados a uma gastronomia da nobreza. “Recordemos que em 1500, 1600, não se comiam doces, era uma coisa raríssima”, ressaltou Carmela. “Mais tarde, os doces só eram consumidos em determinado período do ano. A produção no Monastério era ditada conforme o período litúrgico. A Páscoa, por exemplo, era período de fazer cassata.(…) Além disso, os doces eram preparados inicialmente apenas para presentear pessoas importantes, reis, cardeais, padres, e assim por diante”.
Essa é a razão pela qual as receitas de doces sicilianos nascem nos monastérios e cada um cria a sua própria especialidade, ainda que segundo uma tradição ainda mais antiga, ou seja, sob a influência dos gregos, árabes e de todos os povos que passaram pela ilha. A arte de produzir esses doces permaneceu centralizada nos Monastérios até 1867, ano da unificação do Reino da Itália.
Com a unificação, “o Estado laico fechou todos os Monastérios, pensando que com isso acabariam as ordens monásticas. O Estado chegou a pagar uma renda vitalícia às freiras que deixaram à ordem. De fato, muitas freiras foram embora e retornaram a suas cidades de origem, que é quando acontece a disseminação dessas receitas”, prosseguiu Maria Carmela.
Essa propagação do saber-fazer dos doces conventuais, obviamente, não acontece de forma rápida, nem fácil. Mais de cento e cinquenta anos depois, estamos nós aqui encontrando dificuldades para encontrar algum esperto disposto a compartilhar esse bonito métier.
“As freiras eram muito ciumentas das próprias receitas, e não só não as escreviam, como não as davam a ninguém”, explicou Carmela que acabava por desvendar o mistério por trás de tanto mistério.
Sem registros escritos, a tradição era passada a olho e em medidas nada precisas, o que é fundamental na ciência da confeitaria. Por isso, cada confeiteiro acabou meio que desenvolvendo a própria receita, a base de tentativa e erro. Ao final, a receita bem executada acaba se tornando um troféu, um trabalhoso e delicioso troféu.
Com a intenção original de esclarecer a história e as tradições da confeitaria do Monastério de Santa Caterina, Maria Oliveri, filha de Carmela e apaixonada por história, arte e antropologia, mergulhou no universo secreto dos conventos, conversou com algumas freiras já muito idosas e com base em muita pesquisa e testes práticos escreveu o livro I segreti del chiostro, onde conta a história das preparações conventuais sicilianas e traz as receitas que catalogou durante sua pesquisa.
Não falamos aqui só de cannoli e cassatas, os doces sicilianos mais famosos, mas de receitas de 24 Monastérios diferentes – entre doces e salgadas – uma vez que cada qual tinha seu próprio prato, um prato particular que acabou se tornando sua especialidade.
Os doces são reproduzidos diariamente na cozinha que fica dentro do Monastério de Santa Caterina e estão à venda, a um preço muito acessível, a turistas e a quem mais for apaixonado por cultura gastronômica e por doces, assim como nós dois.
“A ideia foi de recuperar uma tradição que estava completamente esquecida, de fazer conhecer aos turistas, mas também aos palermitanos e sicilianos e dar a oportunidade de reconhecer aquilo que comiam quando eram criança ou de conhecer sabores que estavam completamente perdidos, porque os doces antigos são muito diferentes da confeitaria moderna”, disse o nosso anjo da guarda dos doces sicilianos.
Se você estiver a caminho de Palermo, não pode deixar de conhecer esse espaço que foi mantido fechado por sete séculos e que desde 2018 conta ao público uma história linda de resgate das tradições gastronômicas em pequenos bocados de açúcar.
Granita: o doce siciliano que teve origem fora da clausura
A granita – mãe da gremolada siciliana – é uma das ‘sobremesas’ mais tradicionais da Sicília. Parente distante do nosso sacolé, a preparação que tem gelo como base é umas das poucas que nasce fora dos muros conventuais.
Segundo Maria Carmela, o surgimento da granita se dá em torno da metade de 1500, quando ainda não havia congeladores ou frigoríferos. Nessa época surge uma nova profissão que era aquela dos “nevieres”. Essa pessoa, utilizando mulas ou burros, andava nas montanhas onde havia neve de forma perene, recolhia-a e a trazia a Palermo. Na cidade, a neve era depositada em cavidades adequadas e coberta com palha e assim conseguiam conservá-la pelos três meses do verão.
Essa neve era comprada pelas pessoas ricas para misturar a água com o gelo, ou seja, a água misturada com a neve dava a possibilidade de ter água fresca durante o verão. Em sequência surge a gremolada, a moderna granita, que inicialmente era resultado da mistura da neve com um xarope, geralmente de amarena.
Hoje a granita tem vários sabores, entre eles o clássico de limão siciliano, e segue fazendo sucesso no verão quente que faz na ilha. Gelo, suco de limão e açúcar são vendidos às pencas na cidade.
A variedade dos doces sicilianos conventuais
Da vitrine da confeitaria ao índice do livro de Maria Oliveri, é possível se perder na variedade de doces tradicionais dos conventos. Depois dessa visita, cannoli passou a ser coadjuvante na nossa história com os doces sicilianos.
Na nossa mais nova lista, ao lado de cassatelles e genovesas, o panino de Santa Caterina ganhou a nossa preferência: pasta de amêndoas recheada com marmelada de abobrinha verde. É uma iguaria palermitana diferente e saborosíssima que o mundo precisa conhecer!
Não vimos a preparação do cannoli ou de quaisquer outros doces sicilianos, mas partimos da Sicília muito mais tranquilos e felizes depois da nossa visita ao Il segreti del chiostro. Para reproduzir um doce siciliano agora já temos uma fórmula: seguir a receita desvendada e registrada por Maria Oliveri e praticá-la até encontrar o justo equilíbrio dos ingredientes.
Nosso agradecimento especial à Maria Carmela Ligotti que gentilmente cedeu seu tempo para condividir sua sabedoria conosco.
[su_box title=”I Segreti del Chiostro”]
Monastero S. Caterina d´Alessandria
Piazza Bellini 1, 90133 Palermo, Itália
www.isegretidelchiostro.com [/su_box]