Eu podia começar o relato desse dia dizendo que o meu pé seguia inchado, que a pomada de veterinário da dona Guadalupe só fez coceguinhas no meu tornozelo, que eu continuava mancando feito uma coxa.
Podia dizer também que fez mais calor que nos outros dias, que insetos inoportunos insistiam em zunir no meu pavilhão auditivo, que tive que ficar parada feito estátua com os pés pra cima a manhã toda na esperança de melhorar um pouco.
Mas pensando bem isso seria dar mais importância à fila do brinquedo do que à volta na montanha-russa em si.
Então vamos começar outra vez.
Antes mesmo que o sol nascesse fui acordada romanticamente com uma flor recém colhida do jardim. Meu marido que é, como posso dizer, um “ogro sensível”, tem o dom de me surpreender mesmo depois de 13 anos juntos. Nada de sobrenatural, nenhum cavalo branco aparece nessa história. São gestos e palavras simples que afagam o coração e mantém o amor e o carinho vivos mesmo convivendo vinte e quatro horas, todos os dias.
Essa questão, de estarmos sempre juntos e como fazemos para mantermos a relação saudável, volta e meia acaba surgindo nas conversas com as pessoas que conhecemos pelo caminho. “Vinte e quatro horas juntos? Como conseguem?”
Mas essa não é uma situação exclusiva nossa ou de quem decide fazer uma viagem de volta ao mundo de carro. Muitos casais que tem uma vida convencional (se é que podemos dizer assim) trabalham juntos, enfrentam o dia-a-dia juntos e só se separam por breves momentos.
Veja o caso de Gabriela e Daniel.
Depois de anos morando nos Estados Unidos, o casal voltou ao México, se apaixonou pela região do Valle de Guadalupe e, com as economias, decidiu montar um hotel num terreno em que não havia nada além de pedra, cascalho e areia (lembre-se que estamos falando de uma região muito seca do norte do México).
O hotel foi sendo construído aos poucos e dele naturalmente surgiu o restaurante da Hacienda Guadalupe. O que era um estabelecimento pequeno apenas para servir refeição para os hóspedes, passou a ser procurado também pelos turistas que passeavam pela região. Com o tempo, a clientela externa cresceu tanto que acabou criando uma concorrência entre os hóspedes e o pessoal de fora para conseguirem comer no restaurante.
Foi aí que o negócio tomou corpo. Sem medo da convivência diária, resolveram construir um restaurante ao lado do hotel, com uma linda vista para os vinhedos (que já estavam plantando) e para o Vale.
Foi sonhando e planejando o futuro juntos que o casal construiu um negócio familiar que tomou proporções maiores que o esperado. O hotel planejado para ter apenas seis quartos, passou a ter dezesseis. O terreno que era para abrigar apenas o hotel, hoje abriga um lindo restaurante e também o prédio da vinícola que já está em fase final de acabamento.
E assim hoje vivem dia e noite juntos, dividindo as tarefas de administração dos seus negócios. Enquanto ela coordena o restaurante, ele toma conta da vinícola. A filha auxilia no hotel e juntos conferem todos os detalhes para que nada saia errado, cada um com a sua personalidade. Ninguém diz que é fácil, mas é possível viver vinte e quatro horas juntos sem comprometer a relação quando há afinidade, respeito e um sonho que se sonha junto.
Foi isso que presenciamos enquanto degustamos um delicioso vinho tinto e também quando fomos pra cozinha com Gabriela para vê-la preparar um taco de birria e um rib eye, suculento e macio.
Falando especificamente do restaurante, Gabriela é muito meticulosa: suas ordens são claras e completas, tudo para garantir que as coisas saiam do seu jeito. Mas não confunda ordens precisas com autoritarismo. O respeito ao falar e tratar com seus colaboradores nos dá certeza que de que se trata de inteligência verbal. Uma comunicação clara é um dos segredos de sucesso de qualquer organização e Gabriela nos mostrou como fazer isso muito bem.
Na hora de preparar nosso prato, Gabriela não deu ordens. Foi ela mesma pra cozinha. Vegetais frescos recém entregues por seus fornecedores locais foram salteados enquanto preparava um purê de batatas para acompanhar a carne que estava na grelha.
Preparação simples, fácil e saudável. O segredo não estava na complexidade, mas na qualidade dos ingredientes muito bem selecionados. A apresentação era bonita mas sem estrelismos: o corte brilhando sobre o purê de batatas abriu o petite no exato instante em que foi servido.
O prato forte estava saboroso, mas a surpresa mesmo ficou por conta das sobremesas: sorvete de pimenta rosa e brownie com mole. Lendo o cardápio já deu pra ficar bem curioso, tentando imaginar como seria o gosto do sorvete…do brownie…até que que eles chegaram na nossa mesa!
O sorvete artesanalmente feito no restaurante era muito delicado, lembrando lá no fundinho o sabor da pimenta rosa, que eu e Vinicius gostamos bastante! E o brownie de mole, o que dizer! A mistura do mole com o chocolate deixou a textura que lembrava muito brigadeiro, então já viu né, foi amor a primeira colherada. E pra ficar ainda melhor, a harmonização com o Rosè da casa ficou dos deuses. Sabe aquele doce que você tem vontade de comer por uma semana inteira? Pois é, e nesse caso, acompanhado de vinho rosé!
Depois desse almoço delicioso, eu e Vinicius voltamos para o camping para trabalharmos no projeto. Já Gabriela e Daniel, casados há 33 anos, tiraram um tempinho nos afazeres para se sentar a frente dos vinhedos e desfrutar da companhia um do outro na hora do almoço.
O segredo de uma relação a dois saudável mesmo vinte e quatro horas juntos? Sonhar juntos, crescer juntos, apreciar a companhia do outro, saber o momento de dar aquela pausa nos afazeres cotidianos para desfrutar do sonho realizado e, claro, traçar novos planos.