E o que eles ensinam sobre os vinhos industriais
Quem pensa que vinho é feito de uva, acertou. Mas acertou por pouco. O principal elemento na composição do vinho continua sendo a Vitis Vinífera, mas a importância das suas características organolépticas está cada vez mais reduzida. Com o avanço da biotecnologia, a variedade genética e o terroir estão desempenhando um papel coadjuvante no sabor final dos vinhos atuais.
Será exagero?
Esperamos que sim, mas não é outra a impressão que temos ao nos depararmos com a quantidade de substâncias vendidas pela indústria enológica nos dias atuais. Basta dar uma googlada.
Essa é sem dúvida uma parte importante da história da vitivinicultura que no século passado sofreu uma grande transformação. E não apenas no que se refere à compressão mecânica das uvas em grandes tanques de inox em contraposição à clássica imagem do ato de esmagar o frutos com os pés. Por conta da evolução tecnológica, nossa era é testemunha de vinhos resultantes de uvas de cruzamentos genéticos, de leveduras fabricadas e de conservantes que permitem o vinho atravessar oceanos sem apresentar defeitos.
O vinho continua sendo feito de uva, mas hoje pode ser resultado de tantos “ingredientes” quanto um mole mexicano. Nutrientes, leveduras, enzimas, bactérias lácticas, taninos, clarificantes, estabilizantes e antioxidantes são apenas alguns dos produtos usados na grande indústria vitivinícola.
Os motivos para usar essa salada de letrinhas são vários: prevenção da oxidação, longevidade, incremento do rendimento alcoólico, manutenção ou incrementação das qualidades aromáticas, acentuação das particularidades varietais (como notas de frutas roxas, por exemplo), clarificação dos vinhos brancos e estabilização de cor nos vinhos tintos, aumento da sensação de volume em boca, aumento da complexidade aromática, do corpo e da estrutura de vinhos brancos. Isso para sermos resumidos.
É difícil não se admirar com a engenhosidade humana e toda a biotecnologia desenvolvida nas últimas décadas para se chegar ao “vinho perfeito”. O perfil sensorial sentido na taça é hoje estrategicamente pensado, taticamente orquestrado para que o consumidor encontre no paladar exatamente o que ele estava procurando. Não é sensacional?
Para muitos a resposta é sim, mas uma parcela de novos produtores de vinhos tem avaliado negativamente essa realidade e confrontado toda essa manipulação que, sabemos, não tem como único objetivo refinar o gosto do vinho que vai harmonizar um belo jantar. Desde a revolução industrial, passando pelo pós-guerra, a meta da indústria em qualquer setor da economia, em qualquer lugar do mundo capitalista, tem sido sempre o aumento da produção e a lucratividade.
Em Priverno, a 100 km ao sul de Roma, a meio caminho entre Nápoles e a capital a conversa é um pouco diferente. Emiliano Giorgi e Arcangelo Galuppi se juntaram a um movimento cada vez mais crescente na Europa para escrever um novo capítulo na história dos vinhos contemporâneos. Eles são os jovens que resolveram resgatar o método tradicional de transformação da uva em vinho, que chamam de vinho natural.
Por vinho natural se entende aquele vinho feito com mínima intervenção química e biotecnológica nas etapas de transformação, mas também no cultivo das uvas. O conceito, portanto, passa pela viticultura e chega à enologia e vai além da certificação orgânica ou biodinâmica.
A definição, contudo, é imprecisa, de ordem prática e não normativa, já que até o momento não há legislação ou unanimidade sobre a definição exata de vinho natural. Por isso também, o nome não é certificado por nenhuma instituição ou organismo.
Apesar da inexatidão, o vinho natural tem base sólida: uma produção o menos intervencionista possível.
“O nosso projeto inicia em 2013 e a ideia é inspirada na França”, contou Emiliano que se diz apaixonado por esse tipo de vinho mais jovem, fresco, ligeiro, com uma graduação alcoólica mais baixa.
“Iniciamos o projeto do zero e decidimos fazer vinho só com uva, sem acrescentar qualquer aditivo, conservante e sobretudo sem a utilização de fermento selecionado. O mosto da uva fermenta espontaneamente e por isso é chamado também vinho de território”, acrescentou o jovem produtor.
O primeiro passo para dar vida a esse projeto foi resgatar as videiras nativas que estavam abandonadas na região. “Andamos pelo território e procuramos o que havia com a intenção de recuperar. A partir dos anos 80 muitas vinhas foram abandonadas. Houve uma mudança de geração e tantas pessoas deixaram de se ocupar da terra. Os nonnos trabalhavam no campo, mas os nossos pais fizeram outras escolhas, foram trabalhar em outras áreas”, relembra o co-fundador da Sete.
Hoje, a microempresa se Emiliano e Giuseppe conta com 10 parcelas de terras espalhadas por todo o Vale do rio Amaseno, somando 2,5 hectares de vinhas recuperadas, vinhas que haviam sido deixadas após o colapso da atividade agrícola. Entre as principais estão a Ottonese e a Moscato, as mais representativas do território.
“A característica bela das nossas vinhas é que são vinhedos feitos como uma época, platadas em meio às árvores frutíferas. Nós não usamos nenhum tipo de produto químico, deixamos as ervas crescerem espontaneamente; é a biodiversidade que determina um solo saudável. A ideia é manter o ecossistema que já existe”, frisa Emiliano que tem bem clara a filosofia de resgatar e valorizar o território como ele é.
Para dar vida a essa ideia, Emiliano contou que foi preciso entrar em contato com as antigas gerações, trocar informações, pesquisar novos métodos, experimentar. As descobertas são feitas a cada nova safra, a cada nova garrafa.
“Fazer vinho natural é tanto interessante como complicado”, confidencia o jovem produtor.
As diretrizes gerais de um vinho natural: como são produzidos?
Como já dissemos acima, os vinhos naturais não possuem uma regulamentação ou tutela de órgãos estatais. Quem se encarrega de delimitar o que pode ou não ser chamado de vinho natural é o próprio produtor ou, muitas vezes, a Associação da qual faz parte.
Em linhas gerais, entretanto, encontramos algumas regras básicas presentes tanto em disciplinares italianos quanto franceses. Segundo elas, os vinhos naturais devem respeitar as seguintes características:
No que se referem às vinhas:
- Só podem ser cultivadas livres de inseticidas químicos e agrotóxicos não permitidos na agricultura orgânica. É possível o uso de produtos derivados da natureza, como extratos vegetais, algas, própolis, fungos ou microrganismos antagonistas.
- É vedado o cultivo de videiras geneticamente modificadas (OGM);
- A limpeza/ roça do terreno entre as fileiras pode ser realizada por meios mecânicos, mas nunca químicos.
- A colheita deve ser manual.
- A colheita mecânica é proibida.
- É proibido o uso de fertilizantes sintéticos, sendo possível o uso de fertilizantes orgânicos.
Já na cantina, durante a transformação, os vinhos naturais tendem a atender essas exigências:
- fermentação espontânea com uso exclusivo de leveduras indígenas, portanto já presentes em uvas e ambientes de produção de vinho.
- possibilidade de alterar a temperatura do mosto ou vinho, a fim de garantir o correto processo de fermentação.
- o único aditivo permitido é o dióxido de enxofre em quantidade não superior a 50 mg / l para os vinhos brancos, espumantes, espumantes e doces e não superior a 30 mg / l para os vinhos tintos e rosé.
- a clarificação utilizando produtos à base de albumina, caseína e carvão é proibida.
- é vedada a utilização de leveduras comerciais selecionadas, enzimas, lisozima e bactérias lácticas.
- são proibidas práticas invasivas destinadas a alterar as características intrínsecas do vinho e modificar seus processos vinificação, tais como acidificação ou desacidificação, eliminação de dióxido de enxofre com processos físicos e microfiltrações
Como se pôde ver, o uso de sulfito é permitido na produção dos vinhos naturais, ainda que em quantidades módicas se comparada com a dos vinhos ‘não naturais’. Enquanto um vinho natural tinto pode ter até 30 mg por litro, um vinho “normal” no Brasil pode chegar a 350 mg/L.
A possibilidade de uso do sulfito é aparentemente uma contradição na filosofia não intervencionista dos vinhos naturais e por isso, na França, há uma outra categoria ainda mais rigorosa que proíbe terminantemente o uso da substância. É o que chamam de vinho S.A.I.N.S. – “Sans Aucun Intrant Ni Sulfite”.
Entre todas as características de um vinho natural, a mais importante é que eles não sofrem vinificação forçada. A fermentação e a transformação do açúcar da fruta em álcool são feitas por “leveduras indígenas”, naturalmente presentes no solo, na uva, no ambiente.
Diferentemente das indígenas – que assinam o terroir –, as leveduras selecionadas, sintéticas ou não, permitem ao produtor acelerar o início da fermentação e também adicionar sabor e aromas à bebida. Se isso é sinal de evolução ou retrocesso deixamos a opinião ao encargo de cada um. Certamente há pontos positivos e negativos no uso de toda essa biotecnologia.
O curioso de toda essa discussão, principalmente para nós que nos propusemos a provar os sabores do mundo, é saber que o gosto do vinho que encontramos hoje no mercado não chega perto do vinho que foi concebido de uma forma natural. O vinho engarrafado ou mesmo a granel que bebemos ao final do dia – e que tanto nos faz piacere – não lembra em nada o vinho feito em casa pelos nossos nonnos. Nosso paladar está completamente adaptado aos sabor induzido dos vinhos atuais.
Essa foi a impressão ao darmos o primeiro gole no Infrascato, produzido totalmente sem sulfito, feito com as duas uvas típicas da região: 60% otonese e 40% e moscato. A safra de 2018 alcançou 11,5% de teor alcoólico.
Acidez marcada, fresqueza bem presente e uma vontade de beber copos e copos do vinho branco turvo como cerveja que mesmo depois de um tempo faz as papilas gustativas trabalharem. “Ainda sinto o gosto do vinho na boca”, disse Vinícius, meia hora depois de termos degustado também o branco Tropicale.
O vinho natural é um vinho feito sem técnicas enológicas complicadas, precisas. É preciso saber lidar com um mundo microbiológico invisível, ter paciência e saber trabalhar com que o ambiente te fornece.
“O vinho natural pode mudar de gosto a cada garrafa. É um vinho vivo, muda de um copo para outro. Está em contínua evolução“, enfatizou Emiliano. “É um outro mundo”, completou.
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Priverno – Roma, Itália.
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