Dia 334 – 1 de agosto – Quarta: O melhor café-da-manhã do mundo!

Seguimos no Valle de Guadalupe, descobrindo lugares, vinhos e histórias encantadoras. A personagem do nosso enredo de hoje chama-se Blanca Esthela Martinez Bueno e se você for mexicano é provável que saiba de quem estamos falando.

Dona Esthela, como é conhecida em todo Valle, é proprietária de um restaurante simples de cozinha tradicional, famoso por sua comida farta e saborosa. O lugar é um pouco escondido, em uma rua de barro, mas não há como se perder. Dona Esthela é figurinha ilustre no Valle, conhecida e querida por todos e qualquer pessoa do vilarejo saberá informar não só como chegar ao restaurante como também dará sugestões pessoais do que provar por lá. 

Apesar do restaurante ser famoso por seu café-da-manhã, chegamos às 13h, pra gente já hora do almoço. E a verdade é que o cardápio farto de “desayuno” é servido durante todo o dia, das 7 às 17 horas e não importa muito a hora que você chega no Restaurante da Dona Esthela: qualquer hora é hora de provar suas delícias.

melhor café da manhã do mundo
No pátio do restaurante. Ao fundo, a vinícola que também faz parte da história do restaurante.
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A mesa feita pelas mãos de Dona Esthela

Estacionamos o carro em uma das poucas vagas que havia, entramos de mansinho, olhamos o cardápio e reparamos na forma como os clientes comiam com gosto a comida farta que havia na mesa. Pedimos à atendente se podíamos falar diretamente com Esthela que sem demora saiu de trás dos fogões e veio ao nosso encontro.

Antes mesmo que explicássemos nosso projeto, literalmente em trinta segundos de conversa, ela já nos perguntou o que gostaríamos de provar da sua cozinha. O ímpeto da oferta assim tão espontânea e generosa já nos fez entender o porque ela era tão querida por sua comunidade. Mas queríamos ir além dos pratos da sua cozinha, além dos sabores, queríamos conhecer sua história, quem era a mulher que estava por trás daquelas delícias.

Então Esthela sentou-se conosco em uma das mesas de madeira que ela mesma fabricou com a ajuda de seu esposo e começou a nos contar sua trajetória. “Eu amo minha cozinha”, foram suas três primeiras palavras, “eu tive três filhos, queria lhes dar estudo, então tive que batalhar”, prosseguiu.

Dona Esthela não é chef, tampouco teve estudo, mas tinha determinação, gosto pelo trabalho e um objetivo que a fazia seguir adiante. Seu sustento vinha de lavar e passar roupas, mas com o tempo, o contraste da água fria e do calor do ferro provocaram problemas na articulação dos dedos da mão direita e teve que deixar seu antigo ofício. A cozinha foi sua tábua de salvação. Começou a fazer pães e burritos. Colocava a cesta de pães na cabeça e saia vendendo de porta em porta.

Mas foi em frente à escola primária que se tornou conhecida na cidade: vendendo sanduíches, burritos, tamales e outras comidinhas às crianças. Sem carro, não tinha como levar muita coisa, então voltava para casa para fazer e buscar mais e retornava à frente da escola. Quando seus filhos entraram no ensino médio, os gastos aumentaram e se viu obrigada a pensar em outra forma para aumentar a renda.

Decidiu então que iria vender seus pães na cidade de Ensenada, a 40km do Valle. “Meus filhos e meu esposo me perguntavam quem iria comprar meu pão com tantas padarias que haviam“, contou Esthela. “Não importa, eu quero fazer e vender meu pão”, retrucava ela aos seus familiares. Passou então a fazer seus pães todos os dias para vendê-los no Mercado de Mariscos em Ensenada onde ficou conhecida. Nos dias de hoje, os pães são feitos apenas às sextas-feiras: Dona Esthela prepara semanalmente mil pães, os assa em forno à lenha e os vende em seu restaurante que costuma receber centenas de pessoas nesse dia.

Mas até chegar nesse ponto, teve que trabalhar muito!

Foi com o crescimento da indústria vitivinícola que o seu negócio começou a tomar forma. Os trabalhadores do campo e também das construções passavam em sua casa para comprar os já conhecidos pães e burritos. Chegou num momento que já não conseguia mais sair para vender seus quitutes em frente à escola. Foi então que colocou três mesinhas para receber seus clientes (uma delas justamente onde havíamos sentado). “Meus burritos eram feitos só de verduras, com que eu colhia no meu quintal. Nada de carne, eu não tinha dinheiro para comprar carne”,  lembrou ela.

Aos poucos foi ganhando mais clientes, as crianças vinham comer em sua vendinha, os trabalhadores da vinícola que estava sendo construída ao seu lado também. De repente se viu servindo vinte pessoas e ficou surpresa: “era muito naquela época”. Logo teve dinheiro para comprar carne, preparar mais comida e colocar cobertura no local onde servia seus burritos.

Dona Esthela ficou ainda mais famosa quando caiu nas graças da protagonista da novela mexicana “Cuando me enamoro”, cujas cenas foram gravadas justo na vinícola ao lado de sua casa. “Sílvia vinha aqui, comer da minha comida. Chegava e me abraçava  e dizia que eu a fazia lembrar de sua avó“, nos contou Esthela apontando para as fotos que tirou ao lado da atriz e que hoje fazem parte da decoração do restaurante.

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Na época de vacas magras, Esthela também bordava toalhinhas para conseguir uma renda extra
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Machaca pronta para servir: carne desfiada de gado com ovos mexidos, temperado com muito esforço e dedicação

Tempo depois, o estrelato ganhou o mundo. O prato de “machaca com huevos” servido por Dona Esthela foi eleito o melhor café da manhã do mundo em 2015, pela revista inglesa Foodie Hub. Nos contou ela que um senhor de Londres esteve em seu restaurante, provou vários pratos da sua cozinha e se foi. Passado alguns dias, Esthela recebeu uma ligação. Do outro lado da linha falavam em inglês. Sem entender uma palavra, ela desligava. Na quinta vez que ligaram, um homem falava em espanhol:

“- Posso falar com Dona Esthela?
– É ela quem fala.
– Dona Esthela, como você se sente agora que é ganhadora internacional como o melhor café da manhã do mundo?
– …sim, como?, disse sem entender o que acontecia.
– O que sentes?, perguntou o homem.
– Se isso é verdade, me sinto muito emocionada, mas se é mentira, guarde o seu comentário, disse Dona Esthela pensando se tratar de um trote.
– É verdade, ganhaste o prêmio. Nos diga algo! Como se sente?, repetiu o homem.
– Eu estou chorando de felicidade porque eu sei pelo que passei, mas se isso for mentira, repito, guarde seu comentário, falou ainda descrente.
– Não desligue!, disse o homem que passou o telefone para um segundo.”

Dona Esthela disse que o outro homem falava muito bem espanhol, que lhe parabenizou e disse que era da Cidade de México e que se sentia orgulhoso por ela.

“Eu desliguei o telefone, peguei um copo de água, me sentei e fiquei pensando naquilo tudo, mas continuei trabalhando. No outro dia pela manhã, haviam 5 jornalistas na porta do restaurante. Me senti muito orgulhosa, na verdade, porque eu amo minha cozinha.”

A partir daí as coisas passaram a fluir com mais facilidade para a passadeira, cozinheira, mãe de três de filhos. Os clientes aumentaram, seu restaurante se pôs maior, a cozinha cresceu. Dois quilos de carne já não eram suficientes para atender seus clientes no final de semana. Passou a comprar três, depois cinco, dez e hoje compra quatrocentos e cinquenta quilos por semana para fazer a famosa machaca vencedora do prêmio às dezenas e dezenas de turistas que chegam em carros e ônibus para prová-la.

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Machaca: dois ovos mexidos com muita carne desfiada, coentro, cebola e chile.
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Carneiro Tatemado: assado por horas em um buraco feito na terra
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Prêmio estampado na parede

Nada disso, porém, parece ter mudado a essência daquela mulher de dez anos atrás.

Esthela segue acordando às duas e meia da madrugada para dar início às preparações mais demoradas, vai para o fogão comandar a cozinha, limpa as mesas e atende aos clientes. Ela não para. Às segundas-feiras, supostamente no seu dia de descanso, nos disse que gosta de fazer limpeza mais a fundo no restaurante, lavar as toalhas com vinagre e deixar tudo com cheirinho de limpeza: “isso pra mim é descansar”, disse a imparável Dona Esthela.

Provar sua comida depois de ouvir sua história teve um sabor mais que especial. A machaca realmente era muito, muito saborosa, mas a partir daí o prato não era só um ovo mexido muito bem preparado. Era o passado de uma mulher que batalhou muito para criar seus filhos, uma mulher que não desistiu quando disseram que não daria certo, uma mulher que na simplicidade da sua cozinha conquistou o mundo com sua habilidade de transformar poucos ingredientes em uma deliciosa comida.

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