É um tanto óbvio que as nossas conversas sempre giram em torno de comida. Dessa vez não haveria de ser diferente. Desde que chegamos à casa de Blanca e Edwin, nossos hosts pelo CouchSurfing, temos feitos inúmeras perguntas sobre ingredientes, preparos, receitas e trocado figurinha sobre as gastronomias do Peru e do Brasil. Numa dessas conversas, Vinicius comentou do Cuy, o porquinho da Índia, que havíamos provado na nossa viagem anterior ao Peru.
Logo em seguida, Blanca passou a mão no telefone e em contato com a sua irmã, criadora de cuys para consumo próprio, encomendou quatro porquinhos para fazer no almoço.
Nesse domingo, logo pela manhã, antes que a cevicheria abrisse, ela e Edwin foram buscar os porquinhos. Acompanhamos o processo de limpar e preparar a iguaria tão consumida no nosso país vizinho. Pra gente pode parecer estranho (não tanto como comer cachorro), mas pelo Peru é super normal ter criação pra família consumir. Apesar de ter sido chamado de “conejillo de Indias” ele é nativo dos Andes e é tratado aqui como se fosse a nossa galinha caipira.
Bueno, os porquinhos chegaram na Cevicheria ainda vivos e tivemos que ter o trabalho de abatê-los ali mesmo. Já falamos sobre o consumir de carne aqui no blog, e essa coisa de “matar para comer” que é a mais primitiva ação humana. É normal, é natural, faz parte do processo de sobrevivência e evolução do homem na terra, mas…assusta. Eu, Dani, não gosto de ver a brutalidade. É parte do projeto (e isso faz parte!) que eu realmente não curto. Às chances de eu me tornar vegetariana ao longo do caminho aumentam…
A verdade é que o cuy tem importância ímpar na vida gastronômica no Peru. Tanto que a segunda sexta-feira do mês de outubro é considerado oficialmente o Dia Nacional do Cuy. Tudo para estimular o consumo, aumentar a produção e dar um up na economia familiar dos peruanos. E não se engane achando que o prato só é consumido pelos menos favorecidos.
O cuy está no cardápio de quase todos os restaurantes e pelo que podemos perceber até agora, ele faz sucesso no país inteiro. É considerada uma carne com alto valor proteico e baixa gordura, por isso, saudável. Em geral uma porção leva um porquinho inteiro, servido com a cabeça, patas, tudo.
O preparo da receita mais tradicional, o Cuy Chactado, é simples. O que dá trabalho mesmo é o início do processo. Abater, pelar com água quente, extrair as vísceras e deixar secando ao sol, pendurado, com sal, pimenta, cominho e alho.
Depois de umas duas horas é passar a carne na farinha de milho e fritar em óleo bem quente com uma pedra por cima para evitar que encolha. Costuma-se servi-lo acompanhado de batatas cozidas.
E assim que Blanca nos serviu. Ah, e come-se com a mão mesmo. Sem muito mistério, procura-se a carne entre os ossinhos do porquinho. É pura diversão para os peruanos! E quando chega ao final da carne, o divertido é procurar pelos zorritos, dois ossinhos beeeeem pequeninhos, cerca de dois milímetros, que ficam na cavidade auditiva cuy.
Depois de achá-los, a brincadeira fica mais séria. Coloca-se os ossinhos em um copo com vinho e o desafio é tirá-los do copo, tomando o vinho de uma só vez, sem balançar a taça. Se não conseguir tirar, enche o copo e tenta novamente. Só se para de beber o vinho depois que alguém conseguir tirar os zorritos de lá.
Vinicius fez uma tentativa e não conseguiu.Os zorritos ficaram na lateral do copo. A segunda tentativa ficou por conta de Blanca, que num golpe peruano, engoliu os ossinhos numa só vez. Sem dúvida foi a mais divertida e peruana das nossas refeições que ainda teve a famosa Inka Cola.
O almoço terminou já passavam das cinco da tarde, já que só sentamos para comer depois que o restaurante já estava fechado. Antes disso teve mais comida e diversão!
Depois dos trabalhos iniciais com o cuy, bem cedinho pela manhã, tomamos nosso café que dessa vez era bem substancioso. O pão com palta ficou de lado e à mesa veio o Adobo, um caldo feito com lombo de porco, pimenta ají, cebola e chicha de jora, uma bebida fermentada de milho que dá cor escura ao prato.
Segundo Blanca, o caldo não se come com colher, mas com pão. Molha o pão no caldo e nhac! Pra acompanhar, uma jarra de café que mais parecia um suco. Uma jarra com uns três litros d´água com um pouco mais de uma colher de café solúvel e açúcar. Já se vê que o país não tem tradição de tomar café…
Esse desayuno nos manteve alimentados até umas duas da tarde, quando resolvemos fazer umas caipirinhas para os nossos hosts. O movimento no restaurante estava tranquilo e Blanca aproveitou o intervalo. Buscamos nossa garrafa de cachaça trazida do Brasil e fizemos a tradicional, com limão e outra, com doce de caju que trazíamos desde o Rio Grande do Norte.
Nessa hora apareceu um brasileiro no restaurante que mora no Peru há oito anos e todos os domingos vem almoçar no El Lenguado. Fizemos um copo de caipirinha pra ele matar a saudade. Mundo pequeno, não?
Depois de algumas caipirinhas, Blanca preparou um Leche de Tigre, outro prato muito tradicional do Peru. É um caldo frio feito a base de caldo de peixe, liquidificado com cebola, salsão, pimenta (ají limo) até formar um creme suave. Em cada prato fundo é colocado uma porção de ceviche e cebolas roxas cruas. Por cima, um pouco de coentro picado para dar mais sabor. É uma entrada, mas depois de tomar tanto caldo fica bem difícil comer outra coisa. Ainda bem que o cuy veio bem mais tarde!
E esse foi nosso domingo, com muita comida, bebida e confraternização com Blanca, Edwin e Mari que nos acolheram por uns dias e nos mostraram as tradições e o dia-a-dia de uma típica família peruana.