Croácia e a descoberta dos aspargos silvestres

Um pouco da cultura agro gastronômica croata e a salvaguarda das tradições por uma associação com iniciativas inspiradoras

Verde e amarelo. As cores do Brasil são a cara da primavera no interior da Croácia! Verdes de todas as tonalidades cobrem as montanhas de terreno rochoso nessa época da primavera. Chegando mais pertinho, ao longo da estrada, encontramos uma infinidade de pés de figo que começam a brotar os primeiros frutos. A vontade de pegar alguns era grande, mas eles ainda não estavam maduros. :/

Já o amarelo é rasteiro e aparece nos pastos, em meio às ovelhinhas, e também nos jardins das casas. São as flores de dente-de-leão, a plantinha que conhecemos por soltar a “penugem” ao vento.

Nossa descoberta mais recente é que tanto a folha como a flor do dente-de-leão podem ser consumidas. Mas isso foi ainda lá na Itália. Na Croácia a descoberta foi outra.

cultura gastronômica Croácia
Croácia: belíssima!
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Jardins com dentes de leão

A gastronomia croata e os aspargos selváticos

Nossa rápida roadtrip gastronômica pela Croácia começou pelo interior, com o objetivo de chegarmos à Bósnia e Herzegovina. Nossa casinha precisava ganhar uma nova permissão para rodar pela União Europeia e assim foi feito.

Nessa passagem descobrimos que no interior da Croácia, ao menos no lado leste, a atividade campesina continua viva. Queijos de ovelha artesanais e mel são oferecidos a cada trezentos metros em pequenas casinhas ao longo da rodovia: uma prática comum na América Latina, mas pouco vista na Europa.

Já adentrando a península de Istria, onde o turismo é pulsante, a Croácia ganha outra cara. Hotéis e restaurantes tomam conta das cidades a fim de receber os estrangeiros atraídos pelo mar turquesa, pela hospitalidade croata e pela diversificada gastronomia local.

Sob forte influência da culinária italiana, é fácil encontrar quem prepare uma boa massa acompanhada de frutos do mar ou até mesmo de trufas! Segundos os croatas com quem tivemos o prazer de trocar figurinhas, as trufas da Croácia são de qualidade idêntica às famosas trufas de Alba, na Itália.

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Publicidade: pasta com trufa

Será mesmo? Ficamos curiosos e teremos que voltar com mais tempo para comprovar a lenda, porque dessa vez nossos holofotes ficaram voltados para outra riqueza natural do território croata: os Aspargos Silvestres.

E a descoberta, confessamos, deu-se por acaso.

Estávamos a caminho da cidade de Vodnjan e resolvemos fazer uma parada em lugar isolado, a beira mar, já próximo da linda cidade de Pula. O tempo meio chuvoso não era adequado a uma ida à praia, mas o mar da Croácia apresenta seu espetáculo todos os dias, mesmo sem a luz do sol.

Enquanto fazíamos o almoço, uma senhora apareceu com um guarda-chuva na mão e começou a se embrenhar no mato. Ela usava a ponta do guarda-chuva para afastar os arbustos que crescem no terreno pedregoso da praia (nada de areia fininha por aqui!).

Logo vimos que ela colhia alguma coisa que pareciam simples gravetos. A curiosidade foi aumentando. Vinicius se aproximou e perguntou do que se tratava ao que a senhora respondeu: são aspargos!

Depois disso ficamos feito crianças tentando entender onde eles cresciam, como deveriam ser colhidos e, claro, que sabor teriam. As respostas vieram aos poucos, de cada croata que apareceu no local ao longo do dia com uma cestinha na mão para colher os aspargos.

Estávamos presenciando uma tradição gastronômica curiosíssima e muito divertida. No dia seguinte, quando a chuva havia dado uma trégua e com base nas instruções de colheita dos simpáticos croatas, nos embrenhamos também nós dois em meios aos arbustos.

Os aspargos se camuflam e no início achamos que não encontraríamos mais que um ou dois. Mas era tudo uma questão de treinar o olhar. Logo estávamos avistando os aspargos ao longe e enchendo a nossa sacolinha com aqueles “gravetos” precisos da península istriana.

Mal sabíamos nós que teríamos uma aula particular de como encontrar aspargos silvestres no dia seguinte!

aspargos silvestres
Começando a preparar o almoço
aspargos silvestres
A nossa colheita de aspargos silvestres

A Associação Istrian de Dignan e o nosso mergulho pelas tradições croatas

Chegamos à pequena cidade de Vodnjan por volta das duas da tarde e foi o GPS que logo apontou o primeiro traço cultural importante da região de Istria. A península que liga o Mar Adriático à região do Carste fala italiano, além de Croata, é claro.

Por essa razão, as cidades têm dois nomes, um em cada língua. Vodnjan é croata. A sua versão italiana se chama Dignano.

Nessa região as duas línguas são oficiais e ambos os idiomas são ensinados no colégio. Teoricamente, todos sabem falar as duas línguas o que dá uma mistura pra lá de interessante já que são idiomas completamente diferentes.

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Em Vodnjan-Dignano

Ema Han, a carismática croata que nos recebeu na Associação Istrian de Dignan, nos contou que nas casas a escolha entre os idiomas é sempre ligada à língua mãe, isto é, fala-se a língua que as nonas e as mães costumam conversar. Já no trabalho e no colégio tudo se mistura e depende muito das pessoas com que convive. Curioso, não é mesmo?

Mas de interessante Vodnjan (ou Dignano) tem muito mais!

A Associação em que trabalha Ema, por exemplo, é um poço profundo de iniciativas interessantes. Nós conhecemos de perto algumas delas e ficamos encantados com a fazenda didática, o Ecomuseu e o Ecolaboratório, todos localizados na pequena e simpática cidade de apenas 4 mil habitantes.

Um Ecolaboratório?

Foi a primeira vez que nos deparamos com a expressão Ecolaboratório. De fora, o lugar parecia um pequeno restaurante, mas parecia também uma pequena vendinha. Já do lado de dentro, a confusão ficou ainda maior assim que vimos ramos de ervas secando sobre uma mesa.

Cada vez mais sentimos que as coisas deixam de ser estáticas, quadradas, com conceitos prontos e definidos. O mundo se move para uma nova dimensão onde padrões estão sendo constantemente quebrados (ou seriam os nossos próprios padrões que estariam sendo colocados à prova?)

“O Ecolab é um laboratório de transformação de produtos locais, criado há dois anos com o intuito de aproximar a cultura agroalimentar da própria comunidade e dar visibilidade aos visitantes de fora”, resumiu Dino Babic, um dos fundadores e atual presidente da Associação.

Com efeito, não se trata só de um restaurante ou só de um ponto de venda de produtos artesanais, mas um lugar onde os ingredientes típicos do território ganham visibilidade e importância através da sua transformação em produtos ou receitas que representam a tradição daquela terra.

Para exemplificar na prática como funciona o EcoLab, Ema e as voluntárias que trabalham na Associação nos aguardavam para o preparo de um prato típico da região. Entre os ingredientes estava ele, o aspargo silvestre ou a asparagina selvática.

“Essa é a estação dos aspargos”, nos contou Ema, “sobretudo nesses dias em que choveu bastante, que é quando eles crescem bem rápido e podem ser encontrados por todos os lugares”.

De fato havia chovido pencas nos últimos dias, o que provavelmente aborreceu muito turista em férias pela Croácia. Nós, entretanto, não tínhamos motivos para nos queixar. Foi a chuva que nos trouxe os aspargos, que nas mãos da divertida voluntária espanhola Marta Menendez se transformou em uma deliciosa frittata, que poderia ser traduzida como ovos mexidos condimentados com os brotos exóticos.

“A colheita dos aspargos selvagens é feita bem no início da primavera, quando a tradição pede um passeio no campo para catar os aspargos. Chegando em casa, a primeira coisa que se faz é quebrar dois ovos e fazer a frittata”, contou-nos Dino enquanto Marta preparava a receita.

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Thaila, Elisabetta, Dino, Ema e Marta (da esquerda para a direita)
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A madrilhenha Marta na cozinha
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Frittata de aspargos silvestres: tradição croata

O sabor amargo bem pronunciado dos aspargos finos que provamos na Croácia em quase nada se assemelha ao aspargo que encontramos nos supermercados. Ao contrário desses, aliás, os aspargos selvagens são aquele tipo de comida que a terra dá gratuitamente. Não é possível cultivá-los.

“É um prazer andar no campo num dia ensolarado de primavera a colher aspargos, principalmente agora que temos muito campo não cultivado. Se compararmos com 100 anos atrás tem sempre menos pessoas que trabalham na agricultura e há tanta terra não cultivada. Essas terras são uma mina repleta de plantas com valores nutritivos e curativos”, afirmou Dino que lembrou ainda das propriedades diuréticas dos aspargos silvestres.

A fazenda didática

De onde vieram os aspargos que provamos? Não, não foram os que colhemos próximo ao mar. Eles foram colhidos em meio aos arbustos da fazenda didática da Associação. Foi ali que tivemos a aula prática de como coletá-los.

A dica essencial é reconhecer a planta e depois disso acompanhar os galhos com os olhos. Nem sempre os aspargos estão próximos ao solo. 

aspargos silvestres
Em busca dos aspargos
aspargos silvestres
A colheita singela na aula de demonstração

Enquanto nos ensinava os truques da colheita de aspargos, Dino nos contou que a Associação começou em 2014, com a reunião de alguns amigos que tinham o objetivo comum de preservar as tradições, de promover a agricultura e a cultura local.

A fazenda didática, pelo que pudemos acompanhar em dois dias de visita, cumpre muito bem esses e outros intentos.

Assim como o Ecolab, o lugar ultrapassa os limites da definição pura e simples de uma fazenda voltada ao ensino. Além das atividades didáticas realizadas com as crianças, “o espaço é também um lugar de preservação das espécies vegetais e animais”, explicou Dino ao se referir aos produtos e raças autóctones da região que são abrigadas na fazenda.

“Os burrinhos”, contou-nos ele, “eram os últimos que haviam na cidade, os últimos que ainda trabalhavam no campo e sabiam todos os comandos para trabalhar na roça.” E continuou: “Cem anos atrás havia mais de mil burrinhos na cidade e restaram apenas dois. Para nós era importante proteger essa espécie particular e ainda a inteligência que possuem esses animais, essa linhagem”.

Já uma das cabras foi doada à fazenda pelo antigo dono porque era indisciplinada, sempre fugia do estábulo, sempre estava separada das demais. Animais doentes também são acolhidos pela fazenda, como a cabrinha que sofria de epilepsia e outras duas tinham sido maltratadas com um pedaço de ferro porque haviam entrado sem permissão no terreno do vizinho.

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As cabrinhas e a alimentação saudável com folhas de oliveiras!
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Os burrinho inteligentes de Vodnjan

E assim, cada um dos bichinhos da fazenda – que condividem o espaço aberto em plena harmonia – tem a sua origem e a sua história.

Assim como faz com os animais, a fazenda acolhe crianças, jovens, adultos e idosos.

Ali as crianças brincam, mexem na horta e aprendem a cozinhar. “Elas recolhem os ovos das galinhas e depois vamos até o Ecolab prepará-los”, contou-nos Dino. Brincadeiras que estimulam os sentidos também são bastante realizadas, como o jogo de adivinhar que vegetal é com os olhos vendados. A criança deve descobrir apenas tocando o vegetal ou cheirando a erva.

“São coisas que, ou damos a chance de as crianças aprenderem aqui, ou elas não terão muita oportunidade. Hoje a comunicação dos produtos é basicamente comercial; essa parte sensorial desapareceu”, disse o presidente.

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O Hotel para Insetos que fica na horta: construído pelas crianças

Além disso, a fazenda tem portas abertas aos adultos, que fazem cursos sobre a poda das plantas e também aos idosos, doentes e altistas, que realizam terapia assistida com os burrinhos.

“Somos um centro de reabilitação e de reinclusão de pessoas que são ‘diversamente hábeis’”, disse Dino, usando uma expressão que jamais havia escutado antes e que mostra toda a sensibilidade do projeto.

Um Ecomuseu

No último dos tripés da Associação está o Ecomuseu, montado dentro de uma casa antiga, com cerca de duzentos anos, localizada no centro histórico de Vodnjan. A associação cuidou de fazer as reparações necessárias para a manutenção do prédio, mas o manteve intocado no sentido de que permanece como era na época em que o imóvel era habitado.

É possível ver a distribuição dos cômodos, os móveis antigos, os utensílios de cozinha e um forno a lenha com quatro metros de profundidade. O museu fica no centro histórico de Vodnjan e foi montado a partir de objetos doados pelo moradores da cidade, contando, assim, a história real do passado daquele território.

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Ecomuseum: tudo como era uma vez

No Ecomuseu é possível encontrar também os produtos que são cultivados na fazenda didática e transformados no Ecolaboratório, como o molho de tomate, as azeitonas em conserva e os temperos secos. O azeite de oliva que leva o nome da Associação – que é de uma qualidade excepcional -, também provém das oliveiras plantadas na fazenda. “A colheita das azeitonas é feita com a ajuda de todos, das crianças da escola e dos voluntários da associação“, disse Ema.

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Vinho, azeitonas e ervas: as especialidades croatas da zona de Istria

O que não vira azeite é colocado nos vidros com água salobra. Assim como os aspargos silvestres, as azeitonas da fazenda não têm nada a ver com aquelas verdes ou negras que encontramos nas prateleiras dos supermercados.

As azeitonas colhidas, envasadas e postas a venda pela Instrian di Dognian definem bem o caráter agregador da associação: não há distinção por tamanho, nem seleção por cor.  Naquele pequeno quilômetro quadrado do planeta, todos são bem-vindos, tudo têm seu valor.


Veja mais sobre a nossa passagem pela Croácia!

[su_box title=”Ecomuseum | Ecolab | Fattoria Didática Istrian de Dignan” box_color=”#e5e6e4″ title_color=”#090a09″ class=”Pasticceria Cagna”] Vonjan-Dignano, Croácia
www.facebook.com/ISTRIANdeDignan/
www.istrian.org/en/
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