Dia 225 – 14 de abril – Sábado: Visitando a terra das Rosquillas e do Cânion de Somoto

Provando mais comida típica da Nicarágua

Seis da manhã já estávamos despertos. Ligia e Jim certamente ainda estavam descansando. A previsão era de um final de semana de grande movimento em seu restaurante. Umas horinhas a mais de sono eram importantes para ajudar aguentar o tranco.

Já a nossa previsão era de cinco horas de estrada e por isso partimos cedinho. Às oito da manhã já estávamos na cidade de León, à caça de um tradicional Nacatamal, figurando no topo dos pratos mais típicos da Nicarágua.

Nacatamal: a versão Nica do tamale encontrado em toda a América

O Nacatamal é um prato feito com milho moído e recheado com arroz, batata, tomate e carne, tudo envolvido em folha de bijao. Não chega a ser uma invenção Nica já que encontramos “envueltos” por todos os países pelos quais passamos até agora. Mas o sabor havia mesmo algo de diferente. Era bem ácido e o nosso palpite é que acrescentam limão ou laranja ágria. Vinicius curtiu. Eu achei ácido demais. Curti mesmo foi o suco de cacau que compramos do outro lado da rua, numa casa com uma placa escrito a mão “Hay Fresco de Cacau”. Diferente do Brasil , onde se faz suco de cacau apenas com a polpa do fruto, na Nicarágua eles batem a semente do cacau com leite, açúcar, canela e baunilha. Uma espécie de achocolatado bem mais natural e saboroso que os pozinhos comprados no supermercado.

Casinha rosa em um bairro simples de Leon:  Bata na porta e peça seu “fresco”!

Depois de provar as iguarias de Leon, demos uma curta volta na cidade que foi considerada,  pela revista Forbes, uma das dez cidades mais legais do mundo para ser visitada, isso agora em fevereiro de 2018.

O que nós achamos? Numa opinião bem singela de quem viu a cidade superficialmente, a classificação da Forbes tem mais a ver com a naturalidade da rotina de Leon do que com atrações turísticas. A cidade caminha a passos tranquilos, sem estrangeirismos (por enquanto), com traços históricos e costumes bem preservados. Cremos que seja isso que tenha chamado tanto a atenção dos gringos.

Bem, seguimos nosso caminho para Somoto, a cidade que fica apenas alguns quilômetros da divisa com Honduras. Estradas em perfeitas condições nos levaram até lá. Durante o percurso vimos algumas pequenas plantações, algumas pastagens com gado e uma paisagem bem seca. A época de chuva começa em maio e partir daí tudo deve ficar mais verdinho. Por ora, o que colore a paisagem são os sacos plásticos jogados por todos os lados, algo que não víamos desde que saímos do Peru. É muito lixo jogado nas rodovias! E isso é no país inteiro! Uma pena… um lugar com tantos atrativos naturais deveria preservar ainda mais o meio ambiente.

Chegamos em Somoto, bem pertinho de Honduras por volta das duas da tarde. Somoto é conhecida pela produção artesanal de rosquillas, um biscoito bem sequinho feito com milho e queijo. Tivemos a sorte de conhecer Flora, proprietária da fábrica de rosquillas Delicias do Norte. Com um produto diferenciado, totalmente natural e sem conservantes, Flora hoje exporta parte da sua produção aos Estados Unidos. A fábrica já ganhou vários prêmios, inclusive no Brasil, e já a levou ao Tierra Madre, o evento bienal organizado pelo Slow Food, na Itália, que reúne centenas de produtores artesanais do mundo inteiro.

Quem vê hoje a história de sucesso de Flora não imagina como foi sofrida sua jornada até chegar aqui. Temos escutado muitas histórias de superação, mas a de Flora nos deixou muito impressionados.

Flora perdeu seu pai muito cedo, deixando sua mãe com oito filhos para sustentar. Para colocar comida na mesa, sua mãe começou a fazer rosquillas, o doce típico da região. Flora passou a adolescência vendendo as rosquillas, mas aos dezessete anos decidiu que queria mais. Seu sonho era estudar Medicina, mas só conseguiu meios de custear o curso de enfermagem. Trabalhou quatro anos como enfermeira, mas depois voltou ao seu primeiro ofício: vender rosquillas. O que se passou entre o término dos estudos e o retorno à fábrica de doces foi trágico.

Era início dos anos oitenta e a Nicarágua vivia um período negro da sua história com guerrilhas internas entre a tropas do governo e os Sandinistas. Aos vinte e cinco anos, no auge da sua juventude, Flora esteve em vários combates. “Em uma das batalhas”, conta ela, “minha rótula deslocou, e eu caí em uma linha de fogo onde um fraco-atirador estava disparando em minha direção. Eu caí bem no meio da rua, na linha que divide a rodovia, e já não podia me mover. As pessoas achavam que eu estava morta. Eu estava entre as tropas opositoras. Uns disparavam de um lado, os outros disparavam do outro e todas as balas passavam bem perto de mim. Quando me virei, vi o atirador em uma árvore, mirando o fusível para mim. As balas não me atingiam, mas passavam muito perto de mim. Quando vi que ele estava sem munição e iria trocar o cartucho, eu comecei a rolar, rolar, até sair da sua zona de visão e então consegui me salvar.

Por milagre Flora não foi morta em combate. Mas não saiu ilesa. As consequência da lesão joelho a acompanham até hoje. Aos trinta e poucos anos foi aposentada por invalidez. Como o valor do benefício era muito baixo, passou a incrementar o orçamento fazendo o que sua mãe lhe ensinou ainda pequena: rosquillas.

Desde então passou a planejar seu negócio com grande profissionalismo. Mesmo pequena, a fábrica é referência no seu segmento. No ano de 2017 Flora esteve no Brasil para receber o prêmio Business Management Awards, que premia empresas que se destacam em alguns critérios, como responsabilidade social, qualidade, liderança, criatividade, inovação e lucros obtidos.

O troféu recebido pela empresa de Flora na premiação do Business Management Awards, no ano passado
As rosquinhas de milho que levam doce de goiaba ou de rapadura são chamadas de Hojaldras

Depois de nos contar toda sua impressionante história, ela nos levou à fábrica para conhecer um pouco do processo de produção das famosas rosquilhas. Ao final, Flora nos presenteou com um pacote do doce que representa não só a cultura gastronômica da Nicarágua, como também simboliza uma incrível história de sobrevivência.

Logo depois da nossa visita à fabrica, seguimos rumo à região norte de Somoto, já bem perto da divisa com Honduras, local onde aconteceram as batalhas narradas por Flora. Lá não fomos provar comida. Nossa intenção era apenas passar a noite para no dia seguinte, bem cedo, fazer os trâmites fronteiriços. Mas, já que estávamos por lá, por que não conhecer o Cânion de Somoto? Muitos turistas estrangeiros vem de longe para conhecê-lo.

Somoto está a 216 km da capital Manágua e desde que o Cânion foi descoberto por pesquisadores checos se transformou em destino de aventureiros de todos os cantos. O lugar é bonito, mas a quantidade de lixo acaba deixando tudo bem menos interessante.

De canoa pelo Cânion de Somoto
Rio Côco que corta o Cânion de Somoto

O Cânion tem 5km de extensão e entre 10 e 15 metros de altura. Abaixo passa o rio Coco, cujas águas frescas são um convite para espantar o calor. Depois de caminhar até as margens do rio, uma canoa nos levou até a boca mais estreita do cânion e lá demos um breve mergulho nas águas verdes e calmas do rio.

Já era quase cinco da tarde e logo escureceria. Não quisemos dar bobeira. Era necessário meia hora de caminhada até chegarmos no ponto onde tínhamos deixado o carro. Assim, não nos demoramos muito e voltamos para o nosso acampamento. Ali, bem perto do cenário de onde foram travadas duras batalhas no passado, tivemos uma noite tranquila e serena, com vista para o vale do Rio Côco.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *