“Cerveja italiana é uma cerveja de fantasia”

Como o Mestre cervejeiro italiano Valter Loverier une técnicas tradicionais e produtos locais para se destacar no mundo cervejeiro

Na terra do vinho quem vive de cerveja artesanal é… gente apaixonada! “Amuore per la buona birra” é o slogan do Birrificio de Valter Loverier, situado em Marentino, cidade de apenas 1.300 habitantes, a 20 km de Torino.

Da microcervejaria, da pequena Marentino, os rótulos ganham o mundo. No mercado nacional, responsável pelo consumo de 60% da produção da Loverbeer, a cerveja vai para as prateleiras de lojas especializadas e também do Eataly de grandes cidades italianas, como Roma. O restante é escoado para países da Europa, Estados Unidos, Austrália e Japão.

Incrível, para dizer o mínimo.

Mas a cerveja de Valter não é apenas reconhecida pelo mercado consumidor. A Beer Bible ou a Bíblia da Cerveja (edição americana ainda sem tradução em Português) – conhecido como guia dos amantes da cerveja – traz um artigo extenso sobre a cerveja italiana produzida por Valter. Outras publicações importantes, como o Beer Judge Certification Programme (BJCP), mencionam a cerveja Loverbeer. Até mesmo no Japão, a bebida italiana mereceu resenha.

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Foi da pilha de livros e revistas com matérias a seu respeito que Valter fez questão de nos mostrar a publicação que trouxe as cinco cervejas favoritas de Jean-Pierre Van Roy, proprietário da Cantillon, a famosa cervejaria familiar tradicional belga fundada em 1900. Três das cinco são cervejas belgas, uma, americana e a outra é a BeerBera, da LoverBeer. Figurar entre as melhores cervejas na opinião de quem vive e entende do métier foi um presente e tanto para o cervejeiro italiano.

No ano em que a cervejaria completa 10 anos, Valter lembra que tudo começou pelo prazer de fazer a própria bebida. Um começo quase unânime entre os cervejeiros artesanais: assim também se deu o início da Cervejaria Porto de Cima, em Antonina, no Paraná e a Casa Joule, dos jovens mexicanos de San Cristóbal de Las Casas.

Mas as coincidências param por aí.

Valter iniciou o projeto com a ideia de resgatar as velhas receitas que haviam se perdido com o surgimento das grandes indústrias cervejeiras que acabaram modificando o modo tradicional de fazer cerveja.


Nos últimos 100 anos, entre a primeira e a segunda guerra mundiais, o estilo Lager acabou mudando tudo. Mesmo quem não fazia Lager, acaba usando um pouco mais de lúpulo, fazia uma cerveja mais clara, mais amarga, modificou-se um pouco de tudo”, lembra Valter.

Assim, de um lado, sua cerveja nasceu da intenção de resgatar e manter as antigas receitas e tradições cervejeiras. De outro, Valter quis unir a bebida à cultura vitivinícola de Piemonte, conferindo um status diferenciado ao seu produto no mercado cervejeiro.

Durante sete anos, Valter tratou de estudar, se aprofundar, viajar, trocar ideias com outros cervejeiros e pegar opiniões sobre a sua cerveja antes de fazer disso o seu trabalho full time.

Desse período de incubação nasceu um projeto bastante original. Valter produz apenas cervejas especiais, com pelo menos oito meses de maturação e, em pequena quantidade. Economicamente, a ideia era – e ainda é-, um grande desafio, já que o produto acaba tendo um alto valor agregado, nem sempre facilmente aceito pelo mercado.

A grande oferta de produtos é hoje outro grande obstáculo de crescimento. O número de cervejarias artesanais aumentou expressivamente desde que a Loverbeer iniciou a suas atividades e a concorrência, principalmente no mercado externo, foi sentida. Ao mesmo tempo, o consumo interno de cervejas especiais – especialmente do estilo sour – cresceu, equilibrando as contas.

É na originalidade, entretanto, que a LoverBeer ganhou reconhecimento e mantém o seu espaço no mundo cervejeiro nacional e internacional. Isso sem mencionar a qualidade, é claro.

Cerveja italiana
Valter e as Cervejas Especias: “filhas”
Difícil falar em cerveja italiana sem mencionar a LoverBeer

A produção: longa maturação em barris de carvalho

Como há de se esperar de uma microcervejaria artesanal com foco em produção de cervejas especiais – onde a maior parte é envelhecida em barricas de madeira por no mínimo 8 meses –  o volume de produção não é assim expressivo: são feitas 25 “cottas” ao ano ou seja, cerca de duas ao mês.


Cotta é como é chamada a fase de produção do mosto da cerveja.

O foco está na qualidade do processo e não na quantidade. Nesse enfoque, conhecimento, experiência e o tempo são os verdadeiros aliados de Valter.

Apesar de contar com cervejas feitas exclusivamente em aço inox, a marca registrada da sua cervejaria é a maturação da bebida por longo período em barricas de madeira.

Emprestada do mundo dos vinhos, a fase de “envelhecimento” da cerveja pode ser tão longa quanto a de um Barolo. Na LoverBeer, a depender do rótulo, o líquido repousa até três anos em barricas de carvalho francês.

A importância da barrica no processo é que nela a cerveja pode receber um período de descanso muito mais longo, já que a madeira tem uma micro-oxigenação que permite melhorar seus anéis aromáticos. Segundo Valter, esse processo evita a criação de “off flavors”. Já o inox é usado para uma produção mais rápida, que se conclui em cerca de dois meses.

cerveja italiana
Inox, madeira e também barris descartáveis: o velho e o novo unidos pela cerveja artesanal

Fermentação: espontânea, mista e comercial

A fase de fermentação da cerveja pode ser simples, mas não na LoverBeer. Na cervejaria da pequena Marentino, a fermentação é um verdadeiro quebra-cabeças.

Valter combina onde e com que fermentar o líquido que se transformará em cerveja como num jogo de análise combinatória, muito bem estudado, diga-se.

Enquanto algumas são fermentadas exclusivamente em barris de madeira, outras são fermentadas primeiro em barris de inox e depois passadas pela barrica. Outras ainda, são feitas exclusivamente em inox.

Na LoverBeer, alguns barris são de segunda mão, ou seja, já foram usados para a fabricação de vinho Nebbiolo ou Barbera. A cervejaria conta também com grandes tonéis de carvalho virgem, que apesar do aspecto rústico, são bem tecnológicos: há possibilidade, por exemplo, de controlar a temperatura interior.

Já os barris provenientes do mundo do vinho agregam sabores e aromas, já que as colônias de bactérias e de leveduras sobrevivem na madeira, ainda depois de lavadas inúmeras vezes.

Dos vinte rótulos produzidos pela casa, a Beerbera é a única produzida com fermentação 100% espontânea. A levedura é obtida da casca da uva Barbera, típica da região de Piemonte.  

Contudo, a levedura obtida da fermentação da uva é usada também para a fabricação de outros cinco rótulos. Esses, diz Valter, ganham as leveduras da casa, como as Farmhouse Ale – não exatamente como as Belgas Saison, acrescenta.


A discussão sobre a diferença entre Farmhouse Ale e Season rende um artigo próprio, embora muitos a tratam exatamente como a mesma coisa. Segundo o BJPC, as seasons são “muitas vezes chamadas de Farmhouse Ale nos EUA, mas este termo não é comum na Europa, onde eles são simplesmente parte de um maior agrupamento de cervejas artesanais” (ed. 2015, p. 51). O termo Farmhouse Ale, em suma, remete às cervejas produzidas nas fazendas do sul da Bélgica. Quase todas as fazendas tinham sua própria receita e por isso podiam variar muito. A season, dizem os europeus, é apenas um estilo dentro dessa diversidade.

As demais cervejas da Loverbeer ganham leveduras comerciais. Entretanto, aquelas que terminam o seu processo em barris de carvalho, mesmo com a levedura comercial, resultam de uma fermentação mista, já que a madeira apresenta naturalmente a sua própria colônia de fungos e bactérias.

italian grape ale
Sour: Acidez acima da média, pouca espuma e cor de encher de olhos

Italian Fruit Beer

Valter procura trazer personalidade italiana aos seus produtos com o uso de ingredientes que retratam a cultura do território, especialmente de Piemonte, a província em que está situado.

As Fruit da LoverBeer – inpiradas no método Lambic – são feitas com frutas silvestres, endêmicas da região, muitas vezes sem tanto apelo comercial e, por isso mesmo, com risco de desaparecimento.

Entre elas está a Pera conhecida como Bure Roca, usada para fazer a cerveja denominada Press Perdù (que significa “em risco de extinção”, numa tradução livre, em piemontês).

Outra fruta usada é a Ameixa, conhecida como ramassin, que se transforma na BeerBrugna, uma Wild Sour Aged Fruit Ale. A maturação é feita em barrica por 12 meses e somente depois é acrescida a ameixa fresca. A inspiração, diz Valter, é na Kriek belga, mas feita com um fruto do território. Ácida, mas bem equilibrada.

italian grape ale
Fruit Ale: uvas, ameixas e cerejas na composição

Damasco e Cerejas também entram nessa lista. Essa última é fermentada a partir da levedura da casa. A maturação em carvalho leva cerca de 5 meses. O elemento característico é a cereja azeda de Pecetto e Trofarello, a mesma variedade empregada por séculos para fazer a Belga Kriek. A cor da cerveja é bem rosada, com persistência cítrica e frutada na boca.


Kriek é uma cerveja belga, fermentada com ginja.

A uva, quiçá o maior símbolo da cultura gastronômica italiana, também entra na produção de algumas cervejas. Em um dos rótulos premium, inspirado na Belga Gueuze, Valter mescla uva Nebbiolo, produzida em Cordero di Montezemolo, na região de Barolo, com cerveja maturada em madeira por um, dois e três anos. Feita a mistura, o líquido adormece por mais um ano e só depois está pronto para ser engarrafado e etiquetado como uma Nebiulin-a. “É um tributo ao Barolo e a Gueuze”, diz Valter.

Uma garrafa dessa bebida que reúne o melhor do mundo do vinho e da cerveja custa no mercado nacional aproximadamente 18 euros, cerca de 80 reais.

Gueuze são cervejas resultantes da mistura de uma lambic jovem e uma velha.

Cervejas inspiradas em outros produtos da cultura gastronômica italiana

Além das frutas, Valter usa um conjunto de especiarias que remetem a outras bebidas alcoólicas tradicionais da Itália.

Uma delas é o Vinho Brulé, uma bebida de vinho parecida com o quentão feito no Brasil. Na cerveja inpirada nessa bebida típica de lugares frios, usa-se, por exemplo, o cravo e a canela.

Valter se inspirou no Fernet para fazer uma Imperial Stout. Para fabricá-la ele usa quina, ruibarbo, genciana e açafrão. Também é adicionado café, já que a tradição italiana pede um gole de fernet com café durante os jogos de cartas.

A terceira inspiração vem do Timo Serpilho, uma espécie de tomilho silvestre que cresce voluntariamente nas montanhas da Europa. A espécie é usada também para fazer um licor típico da região do Piemonte.

Italian Grape Ale

Entre os vinte rótulos da casa e um dos quais tivemos o prazer de degustar está o Beerbera, feita com a uva Barbera, típica de Piemonte. É uma legítima representante do estilo Italian Grape Ale, dizem alguns e até mesmo o Guia BJPC (2015, p. 79).

O termo, entretanto, não agrada Valter – e ele faz questão de deixar isso bem claro-, apesar de reconhecer que a classificação acabou criando um estilo internacional italiano e promovendo a cerveja do seu país.

Para o cervejeiro, o termo carece de precisão.

“É como um queijo Toma Piemontese”, compara Valter. “Ele pode ser alto, baixo, pequeno, grande, pode ser feito em todo Piemonte e até mesmo um pouco além de Piemonte, pode ter uma massa branca ou amarela…ao final, ‘tudo’ pode ser considerado Toma”.

O problema da abrangência de um estilo é que ele perde a razão de existir, frisa ele. Assim, uma cerveja em que é acrescentada a uva, mas que é pasteurizada, esterilizada ou a uva é fervida antes de ser adicionada ou que é adicionada na fase de fervura poderia ser chamada de Italian Grape Ale.

“Esses são processos que absolutamente não fazem parte do meu modo de fazer esse tipo de cerveja”, esclarece Valter.

De fato, segundo o BJPC, na Italian Grape Ale “mosto de uva ou uva (às vezes extensivamente fervido antes do uso) pode ser usado em diferentes estágios: fervura, fermentação primária / secundária ou envelhecimento”.

A que tivemos o privilégio de provar havia sido engarrafa em 2016. Segundo o seu criador, a cerveja tem potencial para envelhecer em garrafa pelo menos cinco anos. A fermentação é 100% espontânea feita a partir da levedura da casca da uva Barbera. O sabor é bem refrescante, com as notas vinosas presentes.

Portanto, diante da imprecisão do estilo, de acordo com Valter, a cerveja feita com uva, como é majoritariamente interpretada na Itália, é apenas uma Fruit Ale, isto é, uma cerveja que leva fruta.

A falta de uma normativa rígida, acaba gerando espaço à criatividade nos processos.

“A cerveja italiana é uma cerveja de fantasia”, brinca Valter.

Chame de Fruit Ale ou Italian Grape Ale: certo mesmo é que a Beerbera é uma cerveja diferenciada, original e surpreendente. Com dupla personalidade, é a comunhão perfeita entre cerveja e vinho.

Curiosidades do mundo cervejeiro na Itália

— Uma antiga lei italiana – que visava proteger o vinho – proibia estampar o desenho de uva no rótulo de outros produtos. Por isso, nas primeiras garrafas de BeerBera o cacho de uvas teve que ser coberto por um adesivo. Hoje a lei é mais coerente e permite que o rótulo traga o desenho da uva se o produto é feito com esse ingrediente.

Rótulos cheios de história

— Os rótulos da Loverbeer são de criação do próprio Valter e trazem quase sempre a figura de um religioso e de um campesino, uma união entre o espírito sagrado das divindades e a sabedoria mundana dos camponeses.

— Quem já imaginou usar pétalas de violetas em uma cerveja? Valter já. Na Itália, contou-nos ele, existe um doce, uma bala que é feita com a pétala de violeta. Ao provar a bala, sente-se o perfume da flor. Hoje é difícil encontrar o doce, mas a cerveja Violetta inspirada na ideia, mantém viva – a sua forma – a tradição piemontesina.

— A lei italiana, apesar de obrigar o uso de lúpulo para fazer cerveja, não menciona quantidade. Portanto, na produção das cervejas Sour da Loverbeer o lúpulo é praticamente inexpressivo.

— Na Itália, dizer que uma cerveja tem notas ácidas é ofensa. Acidez tem conotação negativa, e, portanto, costuma-se usar a palavra Sour, sem tradução para o idioma italiano. A confusão vem do mundo do vinho, onde um vinho ácido, para os italianos, é considerado defeituoso e assim, as pessoas não vêem com bons olhos uma “Birra ácida”. Fala-se, portanto, em Birra Sour, para manter a característica ácida da cerveja como algo positivo, algo que confere frescor e equilíbrio ao produto final.

— A Loverbeer pode ser encontrada em pontos de venda especializados em cervejas artesanais em Torino, nas Cervejarias Baladin, e em lojas Eataly Roma e Nova Iorque. No Brasil, Valter procura um parceiro comercial. Alguém disposto a importar uma autêntica birra artesanal italiana?

cerveja italiana
Saúde caríssimos leitores!

Assista o vídeo e saiba mais sobre as cervejas artesanais italianas!

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10020 Marentino (TO)
ITALY
Mobile: +39 3473636680
https://www.loverbeer.com/

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