Esfiha – Uma história de Família

Dizem que a infância pode determinar nossas aspirações pelo resto da vida. Acho que no meu caso isso faz muito sentido! Desde criança lembro de minha mãe cozinhando, é engraçado pois a maioria das lembranças que tenho da minha infância são relacionadas a cozinha ou ao quintal, onde tínhamos uma mini chácara em meio a São Bernardo do Campo. Morávamos a poucas quadradas da Faculdade onde meu pai trabalhava, a FEI, e estávamos no meio de casas e prédios, com a nossa chácara. Tínhamos galinhas, patos, codornas e até carneiros. Haviam várias arvores frutíferas e hortaliças, algumas de nossas brincadeiras eram de sobrevivência no quintal, comíamos somente o que tinha por lá.

Nossa relação com o alimento sempre foi muito profunda, meu pai e minha mãe sempre nos ensinaram muito sobre o que comíamos. Acredito que a paixão de cozinhar veio da facilidade com que minha mãe produzia coisas deliciosas na cozinha e a paixão de cultivar veio da determinação e disciplina com que meu pai cuidava das hortas e das árvores. Hoje os dois já passam dos setenta e ainda tem as mesmas vocações e uma energia invejável.

Um dia me apresentaram a esfiha (լահմաջո; lahmadjo em armênio), não sei quando, pois devia ser muito novo, muito novo mesmo! Desde que me lembro da vida, lembro da esfiha e não era qualquer esfiha, era sempre a esfiha do Effendi!

Fundada em outubro de 1973 pelo armênio Pedro Deyrmendjian e seu filho, Armando Deyrmendjian, a Esfiharia Effendi faz, desde essa época, suas famosas esfihas. Mas para entender como os armênios chegaram aqui, temos que falar um pouco sobre a história deles no Brasil.

Tudo começou quando os turcos invadiram a Armênia, resultando em um triste genocídio. Muitos armênios saíram de sua terra natal, em busca de uma nova vida. Entretanto, o pai de Pedro havia sido capturado pelo exército turco, mas felizmente foi poupado da morte graças à sua habilidade de fazer pão. Seu talento era tão grande que ele conseguiu ajuda do próprio exército turco para fugir do campo de concentração. Foi aí que ele veio para o Brasil, com seu filho Pedro e o resto de sua família. Aqui, eles se instalaram no bairro da Luz, onde Pedro aprendeu com seu pai a habilidade de fazer uma boa massa de pão. Alguns anos depois, o sonho de abrir uma esfiharia se tornou realidade e tudo começou de uma forma bem simples e caseira. Seu Pedro fazendo a massa, sua mulher, Dona Verônica, preparando todos os recheios e o filho, Armando Deyrmendjian, na administração.

esfihaMinha família por parte de mãe é armênia, junto com vários armênios vieram fugindo dos turcos e se estabeleceram no Brasil. Acredito que todos os armênios de São Paulo conhecem o Effendi e também que a maioria levava o próprio recheio da esfiha. Era muito interessante para nós esse processo, o recheio era feito em casa, cada um tinha seu toque especial, e depois era entregue no balcão para serem feitas as esfihas quentinhas e deliciosas e então entregues embrulhadas para podermos levá-las para casa.

Em 1995 meu pai mandou a família toda para Blumenau, pois São Bernardo do Campo já estava muito perigosa e ele achou que teríamos uma vida melhor aqui no Sul. Claro que adorei poder correr livre pelas ruas, andar de ônibus tranquilo e voltar a noite para casa. A mudança de vida foi significativa, mas perdemos as esfihas do Effendi.

Daí para frente foram várias tentativas para reproduzir aquela massa tão bem-feita e aperfeiçoada desde 1973. Fazíamos no forno normal, no forno a lenha, colocávamos leite, iogurte, manteiga e várias outras coisas na massa e nunca conseguíamos chegar perto daquelas esfihas. Fizemos algumas noites árabes na Trattoria di Mantova, nosso antigo restaurante e muitas esfihas eram servidas, todas deliciosas e muito apreciadas por nossos amigos e clientes, mas não eram iguais as do Effendi.

Mês passado acertamos! Fomos eu e a mãe para a cozinha, conseguimos uma receita clássica de esfiha e tentamos a sorte mais uma vez. Após algumas horas as esfihas quentinhas e deliciosas, com a massa macia de sua borda alta, a textura granulada do fubá, o sabor inconfundível de nosso recheio, com cebola, carne, tomate, salsinha, limão, pimenta e sal. A acidez do limão e da cebola cozinham a carne antes mesmo de ela entrar no forno, a suavidade da salsinha e da massa contrastam com a pimenta e a doçura do tomate se equilibra com o sal trazendo um umami a cada mordida.

esfiha

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

É maravilhoso como podemos encontrar um sabor da infância e o quanto isso pode nos deixar realizados! A receita da esfiha de carne você pode conferir clicando no link abaixo:

Receita de ESFIHA de CARNE

E você, qual o prato que lhe lembra a época de criança?

4 Comentários

  1. Delícia ler o seu texto Vi !!!!! Parabéns,adorei!

  2. Obrigado! Vai demorar mas vamos chegar na Armênia!!!

  3. Excelente texto, escrito com o coração!! A comida para mim também traz lembranças incríveis da minha infância com minha mãe, meu pai e minha irmã cozinhando!!

    1. Obrigado Deborah! Cozinhar nutre o corpo e a alma!

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