Dia 175 – 23 de Fevereiro – Sexta-Feira: A voz de um garçom Venezuelano em terras Colombianas

Apesar de termos muitos motivos para conhecer a Venezuela, dona de belezas naturais estonteantes, visitar o país nunca esteve em nosso roteiro, todos bem sabem os motivos. A situação política-econômica é péssima, pra ser simplista, fazendo com que a travessia por aquelas terras se tornasse muito perigosa.

Mas se não fomos à Venezuela, parte dela veio até nós. Nesses dias em que passamos no nordeste colombiano, há duas horas da fronteira, tivemos contatos com alguns venezuelanos que buscam na Colômbia um sopro de esperança para continuar a viver com dignidade.

Uma dessas pessoas com as quais conversamos foi Darwin Navas. Aos 42 anos ele deixou mulher e filho na Venezuela para trabalhar como garçom na Colômbia. Com a crise em seu país de origem, ele viu sua vida mudar drasticamente em pouco tempo. Por conta do racionamento de alimentos e escassez de dinheiro, perdeu 80kg em nove meses. A história que ele nos contou nos comoveu tanto que pedimos sua permissão para transcrevermos aqui uma parte da entrevista que ele gentilmente nos concedeu.

Darwin Navas, em busca de uma vida digna na Colômbia

Darwin, qual era sua ocupação na Venezuela?

Eu era licenciado em “mercadero”, técnico em vendas na empresa Polar. Eu era chefe do departamento responsável pela venda de bebidas alcoólicas.

E a empresa fechou?

Várias sucursais fecharam. A matriz não fechou, mas hoje só produz 40% do total que produzia anteriormente, somente para abastecer a zona da capital. Por que? Porque o governo não está dando dinheiro suficiente para que comprem a matéria prima do exterior.

Há quanto tempo está na Colômbia?

Seis meses.

E como fosse recebido na Colômbia?

Primeiro, quando vim pra cá, não sabia que viria a Palomino. Cruzei a fronteira e ia até as cidades de Santa Marta e Barranquilla. Mas fiz uma parada aqui e achei um povo muito parecido com um povo em Puerto Cabello, na Venezuela e por curiosidade desci aqui, caminhei até a praia e vi em um albergue uma senhora que não tinha feições de jardineira e estava mexendo com o mato. Então a ofereci ajuda e ela me disse que sim, para eu entrar e eu disse sou venezuelano, estou chegando …e ela me estendeu a mão. Era a dona do hostal e até momento não tinha um jardineiro. Bom, aí fiquei e trabalhei uns três meses com ela.

Mas quando você veio para a Colômbia pensavas em trabalhar com algo específico? Fazia ideia do que iria fazer?

Não, não fazia nenhuma ideia porque, de fato, quando vim da Venezuela a Colômbia, me disseram que precisava apostilar meu diploma e apostilar o diploma é muito caro na Venezuela e ganhando um salário mínimo não dá para apostilar o diploma, mal dá para comer. Assim vim sem nenhuma documentação, apenas com o meu passaporte que foi o que apresentei na fronteira pra poder passar.

O seu trabalho de jardineiro não durou muito tempo, certo? Depois procurasse outros trabalhos?

Sim, depois vim trabalhar no restaurante como garçom.

E você já tinha trabalhado como garçom alguma vez?

Não, não. Meu emprego na Venezuela era de chefe de departamento, tinha ao meu encargo cinco supervisores. Eu visitava os mercados, bares, restaurantes, supermercados; cuidava dos armazéns e das promoções, cuidava dos papeis do meu pessoal, fazíamos reuniões de mercado ao final do mês e mandava todas as informações a Caracas para ver como estavam indo as vendas…

Já aqui, o meu primeiro trabalho, além de jardineiro, o que me ofereceram foi para cuidar dos cavalos e me disseram “tire todo esse estrume que está aí e lave os cavalos”…então imaginas como me senti. Tudo isso fiz para o meu filho, para minha família…

Bem, depois no restaurante, tratei de fazer meu melhor, na medida que vão se passando os dias vou conhecendo muito da cozinha, claro, não como chef, mas gosto de cozinhar.

E a pessoa que me acolheu no hostal por primeiro, depois se deu conta e viu que a nós venezuelanos se “poderia” explorar um pouco, entende?… e já não pagava seguro, pagava em parcelas, essas coisas… Então o que ela fez foi me manter como ilegal e aumentou minhas horas de trabalho. Isso é algo que de verdade o ser humano não deve fazer. Foi aí que fiquei descontente e já não podia mais trabalhar com ela. Primeiro porque estava me maltratando fisicamente…então decidi sair daí. Ela muito insatisfeita me disse que não, que ela seguia as regras da Colômbia e que se eu estava ilegal teria que trabalhar de acordo com suas condições.

Ela te fazia trabalhar muito mais com o mesmo salário?

Sim, das cinco da manhã até as onze da noite.

Quando fecharam a filial aonde trabalhavas, creio que você chegou a procurar outro emprego lá mesmo na Venezuela…

Na Venezuela não há emprego. Mas a verdade é que estou ativo na empresa. A filial fechou, acabou a produção, mas sigo ganhando um salário mínimo. Todavia nos tiram o auxílio alimentação, vale transporte, comissões, então o salário baixou a uma cifra insignificante, a 451 mil bolívares, que são equivalentes a um quilo de arroz, 3 dúzias de ovos, 1 quilo de queijo e mais nada. Isso tem que durar um mês.

Como está a situação agora na Venezuela, como está a saúde, as pessoas passam fome?

Na Venezuela as pessoas passam muita, muita fome, não se consegue comida. E no setor da saúde quem estão sendo muito afetados são as pessoas da terceira idade que não eram e estão ficando diabéticas. Porque, por conta do alto consumo de açúcar na dieta diária e o metabolismo já não é o mesmo… a dieta diária mudou e as pessoas estão se tornando diabéticas.

Há médicos, remédios?

Não há remédios. Vamos ao centro clínico e há remédios, mas são caros, o Estado não financia. Existe o que chamam de CDI, onde tem uns médicos cubanos que te atendem, mas te dão a receita para que compre os remédios o que no final dá no mesmo. Você entra com dor e sai com dor, porque como vai conseguir o remédio? Nos hospitais, os partos são feitos do lado de fora…eu vi cenas de uma mulher dando a luz do lado de fora do hospital porque não há macas, não há soro, não há nada para fazer o parto. É muito doloroso ver como estão vindo ao mundo…

A oferta de alimentos é racionada? Há limite de venda de produtos para cada pessoa?

Sim, há limite com preço regulado. Te vendem um quilo de arroz, um pacote de macarrão e mais nada, por pessoa. A fila começa às três da manhã e tem que aguardar até amanhecer para comprar um quilo de arroz e um quilo de pasta. Registram o número da tua identidade e você tem que aguardar até a próxima semana para que possa voltar a comprar…um quilo de arroz e um quilo de macarrão, se é que chegam esses produtos. E se na próxima semana não chega nem arroz nem pasta, se chega papel toalha e sabão, não comes. Então obrigam o povo a comprar o papel e o sabão que terão que revender para poder comprar de outra pessoa que tem arroz ou macarrão “sobrando”… ou trocar. Isso acabou gerando o que chamam de “bachaquero”, a pessoa que compra produto alimentício e revende pelo triplo do preço…

E falando de gastronomia, quais são os pratos típicos da Venezuela?

Na Venezuela o prato mais típico é o Pabellón, que é arroz, feijão, carne desfiada, banana frita e um ovo cozido acima. E temos as arepas também. Creio que as arepas tenha nascido na Venezuela, porque lá é arepa pela manhã, à tarde… todo o tempo.

São como as colombianas?

Não, são muito diferentes. Nós fizemos arepas assadas e fritas, mas são feitas com grande quantidade de farinha, farinha mais grossa.

Não são feitas de milho moído?

Não, são de “Farina P.A.N”, que está há cinquenta anos na Venezuela, já é uma tradição. E a arepa mais conhecida é a arepa “Reina Pepiada”, recheada com frango cozido com abacate, tipo guacamole, e queijo.

E o outro prato que caracteriza a Venezuela é o mondongo, a sopa com a barriga de porco. Costumávamos comer aos domingos, com a família, depois de ter tomado uma cerveja.

E algum doce tradicional?

Sim! Há a conserva de côco, feito com côco ralado e rapadura. Há também o doce de mamão verde..cozinham o mamão verde até que fique macio e depois acrescentam açúcar até que forme um caramelo.

E a bebida mais consumida? Cerveja?

Sim, a cerveja. Era. Já não a consomem…

E para o futuro, o que pensa? Vai trazer a família para a Colômbia?

Bem, costumamos dizer: “amanhecerá e veremos”… porque trazer a família para cá é como desprendê-la do seu mundo. Eu já tive que me separar da minha família. A verdade é que é duro…ficar longe do meu filho.  É difícil porque tiraram a juventude, a infância das crianças.  Eu tive juventude, mas meu filho não teve juventude. Me resta ficar aqui, trabalhar e me mandar o dinheiro para ele para que ao menos possa lidar com a situação. Eu gostaria de trazê-lo para cá para a Colômbia, mas não quero decidir sobre a vida do meu filho, tirar do convívio de seus amigos. E também não podia fazer isso com minha esposa. Então um dia me sentei com ela e disse “não tenho nenhum problema de saúde porque considerando todo o peso que perdi, não posso continuar aqui na Venezuela. Já perdi 80 quilos e em mais dois meses vou perder 100 quilos e acho que vou morrer. Eu acredito que a solução é eu ir. Vou a Colômbia, que o lugar mais perto e o dinheiro que tenho me levará só até lá”. Ela concordou. Tinha um amigo que já estava na Colômbia e que me disse que com um dia de trabalho na Colômbia eu poderia comer quatro dias, enviar dinheiro para Venezuela e melhorar a situação, não por completo, mas poderia melhorá-la um pouco. Então foi assim que decidi.

Então quando me perguntam se traria para cá meu filho, minha família…não. Tenho fé que eu regresso. Eu volto a Venezuela e continuo minha vida lá. Aqui tem muitas pessoas que me perguntam por que não luto por algo melhor, sabendo que tenho diploma universitário, e minha resposta sempre tem sido essa:  eu não vim pra Colômbia para vencer. Não, eu venci lá na Venezuela, já estudei muito e lá conquistei meu nível e aqui na Colômbia vim para superar a crise. Cheguei aqui com duas maletas. Uma de roupas e outra de autoestima, bastante vazia… não tinha autoestima quando cheguei aqui.  Hoje, graças a Deus, já tenho moral, já posso sorrir e telefonar para a família e contar-lhes… E já me desprendi dessa maleta, essa que eu tinha e que carreguei desde a Venezuela e que era muito sofrida. Hoje já posso dizer que não a carrego mais.

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