A primeira coisa que vem em nossa mente quando as pessoas nos perguntam sobre o prato típico da gastronomia brasileira é… feijoada! Roda de Samba, caldinho de feijão, caipirinha, cachaça, panelão de feijão preto com pé de porco, rabo de porco, costelinha defumada, linguiça e tudo mais que quiser colocar.
Já provei feijoada com batata, com vagem, com chuchu, com abóbora. E sempre tem aqueles que fazem com um pouco de cachaça ou colocam um laranja inteira para quebrar a gordura. Mas a feijoada não vem sozinha, tem que ser misturada como o povo brasileiro, caso contrário não representaria o Brasil. Tem que ter a farinha ou a farofa, coisa que é muito difícil de explicar para os não-brasileiros. Geralmente tenho que contar toda a história de sua produção, desde ralar a mandioca até tirar o amido, ralar novamente, peneirar, secar, peneirar, tostar e peneirar e aí chegamos na nossa tão querida farinha de mandioca.
Agora, só feijoada e farinha, isso é coisa do Sul do país, que por sinal tem costume de comer a feijoada em prato fundo. Mais para cima, depois da terra da garoa, já tem que ter o arroz, a couve e a laranja.
Sempre que falamos da feijoada alguém nos diz que tem um prato igual, feijão com arroz tem por toda a América Latina. Claro, esse costume foi trazido pelos escravos africanos!
Mas quando falamos da farinha ou da farofa, aí nosso índios entram na roda. Aprendemos muito bem, em todos os países onde já investigamos a gastronomia, que o que realmente importa são os costumes pré-coloniais, pois esses são os grandes divisores de águas, os selos únicos de cada cantinho do mundo.
Os povos indígenas do Brasil eram os únicos que faziam a farinha de mandioca. Passamos por quase todos os países da América Latina e não tivemos um relato da existência da farinha de mandioca. Encontramos mandioca com o nome de Yuca em vários deles, mas nem sinal da tal farinha, um golaço para nossos primeiros descobridores.
E os portugueses? Não tem como falar em gastronomia brasileira sem falar deles! Os portugueses trouxeram muitas coisas, mas as duas principais foram o fogão à lenha, feito com uma chapa de ferro e alguns buracos onde se colocavam as panelas e o fogão de abóboda (o nosso forno à lenha). Sem o primeiro a feijoada não tem graça. Igualmente perde a graça quando não vem acompanhada da caipirinha, que sem a cachaça nosso povo não teria tanta história para contar. Graças aos produtos trazidos pelos portugueses, como a cana de açúcar, o arroz, o alho, a cebola e o sal, nossa feijoada é o que é.
Mas hoje não quero falar de toda a gastronomia brasileira, pois aí estaria escrevendo um livro e não um texto. Quero apenas mostrar a importância da história e da cultura na gastronomia. Gostaria que após essa leitura, as pessoas entendessem que não existe um prato sem história, sem origem, sem cultura e nem sempre o prato vem de uma história feliz. Nossa bandeira culinária, por exemplo, vem de uma história triste, da escravidão, da matança indígena, da exploração de um povo, mas é aí que vive a beleza do cozinhar. Mesmo em um momento difícil houve celebração, houve comunhão envolta de uma panela no fogo e hoje é motivo de festa, de samba, de orgulho nacional.
Os índios vieram primeiro, mas antes deles haviam outros, quando falamos em povos indígenas das Américas pensamos em uma separação muito clara. Estudamos algumas coisa no colégio, mas não muito. Temos o dia do índio, mas nada sabemos sobre os primeiros habitantes das Américas.
Quero levantar uma questão que para nós tem sido muito importante nesta grande investigação gastronômica pelo mundo. Primeiro, temos um costume muito cartesiano de separar muito bem as coisas, mas no mundo natural isso é praticamente impossível, e quando falamos de povos indígenas estamos falando de algo natural. Existiam muitas etnias nas Américas, mas sempre estudamos as grandes civilizações, como Incas, Maias e Astecas. Entrando mais a fundo nestes estudos, começamos a nos dar conta que as coisas não eram tão simples quanto parecem nos livros. Existiam muitas outras etnias e algumas se expandiram muito mais que as grandes civilizações, mas não tinham um centralização tão grande de poder.
Entro nesta questão simplesmente porque estava estudando sobre a mandioca e sua origem. A mandioca é considerada um cultígeno, ou seja, só é conhecida na forma de cultivo, não existe um exemplar selvagem. Existem relatos da importância da farinha de mandioca que datam entre 3 mil e 2 mil AC, e várias hipóteses sobre sua origem. Atualmente é aceito que a mandioca é originária do nordeste brasileiro, onde viviam os Arawak que depois migraram em direção ao Paraguai e as ilhas do Caribe, chegando até a pontinha do que hoje é a Flórida. A mandioca é nossa! Dá um certo orgulho saber que esse gênero, que hoje possui entorno de 100 espécies cultivadas em mais de 100 paises e é a principal fonte de alimento de mais de 700 milhões de pessoas saiu aqui do Brasil há 5 mil anos atrás.
Após a migração dos Arawak e de seu encontro com os Tupi-Guarani e o comércio destes com os Incas e destes com os Maias e da Colonização Européia e da dispersão da mandioca pela África e Sudeste Asiático e da globalização do alimento, chegamos nos dias atuais e podemos entender um pouco cada receita e cada cultivo, porque as coisas são como são e porque somos nós os detentores do conhecimento da nossa amada farinha de mandioca!