Quatro e meia da manhã. A não ser o canto fervoroso dos galos da vizinhança, os sons que nos despertaram era inéditos aos nossos ouvidos. Naqueles minutos de contemplação do canto de novas espécies de pássaros, a cabeça já estava a mil. Os eventos que se sucederam desde que chegamos em Belém eram combustível para o nosso projeto, cuja missão parecia ainda mais importante.
Poder divulgar – ainda que proporções diminutas nesse espaço virtual gigantesco – histórias, trabalhos e produtos como os de De Mendes é um verdadeiro privilégio do qual nos honramos muito.
Depois de agradecer as oportunidades que a vida tem nos oferecido, pulamos da cama com aquela vontade de conhecer, aprender e explorar nossos sentidos.
De Mendes já estava de pé, ou melhor, sentado em sua mesa de escritório, pesquisando sobre os flavors do chocolate, ainda intrigado com o sabor terroso encontrado por Vinicicus na degustação dos chocolates feita no dia anterior.
Dali a conversa já enveredou para o chocolate mais uma vez…e que delícia é falar sobre esse assunto! O Indiana Jones do Cacau, como é conhecido De Mendes, não hesita em discutir acerca do chocolate, nem de comer uma boa quantidade dele logo no café da manhã.
Sete horas. Era hora de deixar a Comunidade de Chicano e voltar à capital. Era dia de realizar um dos desejos mais externalizados por Vinicius nos últimos tempos: acompanhar o abate de um porco e a produção de todos os derivados dos miúdos e da carne suína.
[Sabemos que nos nossos dias esse é um assunto delicado. Delicado porque envolve opiniões divergentes e por isso mesmo nos faz parar para refletir (recorde toda discussão que ocorreu quando Rodrigo Hilbert mostrou o abate de um cordeiro em seu programa de TV).
E nessa reflexão queremos dizer que o movimento ovolactovegetariano tem nosso total respeito. Principalmente porque ele leva a pensar sobre o alimento como algo além da mera sobrevivência humana. Inevitavelmente ele acaba dando mais atenção ao que colocamos à mesa, atribuindo valor ao que é orgânico, mais saudável e, via de regra, mais saboroso. Isso é excelente!
Por outro lado, entendemos também que “matar para comer” – e aqui nos referimos a um ato simplista, sem envolver outros aspectos relacionados à poluição, maus tratos ou a ganância do mundo capitalista – tem uma importância singular não só no desenvolvimento do que hoje chamamos de gastronomia, mas na própria evolução da humanidade.
A história dos povos, especialmente do povo brasileiro cujas nuances estamos descobrindo um pouco mais nessa etapa do projeto, mostra que o aqui e agora é indissociável do ato de matar para comer.
É da carne de caça que o pantaneiro sobrevive; são o porco, o gado e o frango que mantém vivas tradições seculares no interior de Minas Gerais e Goiás; são os frutos do mar que levam sustento a milhares de famílias no litoral; é o churrasco que aproxima as pessoas no sul do Brasil.
É claro que isso não quer dizer que as coisas não possam mudar e o mundo possa ir em outra direção. Absolutamente. Mas nosso projeto tem a missão de conhecer a cultura através dos alimentos e aí, caro amigo leitor, olhar pra trás e vivenciar de perto o “matar pra comer” faz parte do nosso caminho em busca pelo conhecimento.
Não há como saber para onde estamos indo ou qual caminhos devemos tomar sem saber quem fomos ontem e quem somos hoje. Daqui a três anos, quando nossa experiência chegar ao fim, poderemos falar mais sobre o amanhã.]
Dito isso, podemos dizer que a experiência foi muito rica (por várias razões).
Chegamos a casa dos tios da Chef Ilca, esposa de Paulo Anijar, antes das nove da manhã. Antes mesmo dos chefs e…do porco.
Adelmo e Hilda nos convidaram a entrar e em poucos minutos de conversa já nos serviram um cafezinho. Alguns minutos a mais trouxeram pupunha que haviam colocado para cozinhar assim que manifestamos nosso interesse em saber que gosto tinha esse fruto da palmeira. A gentileza nos permitiu conhecer um dos sabores da Amazônia de que mais gostamos: olhando parece uma abóbora, meio alaranjada. Na boca, a pupunha nos lembrou uma castanha portuguesa. Surpreendente.
Não demorou muito e o leitão chegou. Rita, sogra de Paulo, foi a encarregada de trazê-lo. Vinicius, Adelmo e um senhor que passava pela rua naquele momento levaram animal de 70 kg para ao local onde seria abatido. Aí foi só aguardar a chegada de Paulo para os trabalhos iniciarem.
Assim como o Vinicius, Paulo nunca havia presenciado o ritual, o que tornava tudo mais experimental e até mais interessante. Foram mais de seis horas de trabalho entre o abate, a remoção do couro e pêlos, a retida dos órgãos, o destrinchar da carne, a limpeza do local.
Assim que saiam os primeiros cortes de carne, Hilda já providenciava o tempero e o preparo. Alguns foram feitos na churrasqueira, outros no forno e alguns na panela.
Vinicius separou o intestino para preparar as tripas que receberam a carne para fazer linguiça. Adelmo destrinchava as partes maiores do porco. Rita se encarregou de fazer o fígado e lavar o estômago para rechear com carne. Paulo preparou a parte da qual foi feita um carré. Vinicius e Paulo também se encarregaram da cabeça, que foi cozida na água.
Muitas partes foram reservadas para congelar e preparar noutro dia. Mas tudo, ou 99% do animal foi aproveitado.
Matar, limpar, destrinchar, preparar, comer.
E quando a ficha havia caído, estávamos lá, sentados em volta da mesa, compartilhando um momento único na casa de uma família paraense super acolhedora e muito envolvida com a gastronomia.
Já dissemos por aqui, mas vale lembrar. Paulo Anijar e a esposa, Ilca, são chefs e proprietários do restaurante Santa Chicória em Belém do Pará e fazem com os peixes e frutas típicas do estado pratos de dar água na boca. Rita, mãe de Ilca, também trabalha no restaurante. Hilda vende quentinhas e prepara bolos e tortas também por encomenda com muito capricho. Vimos ela preparando algumas de sua comidinhas enquanto todo aquele movimento acontecia na sua casa. Provamos, inclusive, a maniçoba e o baião de dois que ela preparou.
A maniçoba (já falamos dela por aqui) é o prato feito com a maniva, a folha da mandioca braba, que precisa ficar dias cozinhando para que saia todo o cianeto e a deixe bem macia.
O baião de dois, diferente do que provamos no Nordeste, não é feito com feijão verde, mas o feijão marronzinho mesmo, tradicional. E não leva queijo coalho. O tempero é mais leve. Leva o cheiro verde deles, chicória e cebolinha e o gosto fica bem mais leve que o típico do Nordeste.
E assim vamos descobrindo os sabores de nosso Brasil. As diferenças culturais tornam tudo mais bonito, mais rico, mais curioso e interessante.
Já era tarde quando nos despedimos da família de Paulo e partimos para o posto de combustíveis já na saída da cidade para passarmos a noite. Adelmo e Hilda nos ofereceram pousada, mas não havia onde estacionarmos nosso carro/casa e pelos relatos de falta de segurança nas proximidades, resolvemos não arriscar deixá-lo na rua.
Chegamos bem cansados e tudo que fizemos foi tomar um banho, abrir nossa cama e descansar. No dia seguinte teríamos muitas horas de estrada pra enfrentar.