Dia 78 – 18 de novembro – Sábado: Cuidado com o que você deseja – Parte II

Quatro e meia da manhã. A não ser o canto fervoroso dos galos da vizinhança, os sons que nos despertaram era inéditos aos nossos ouvidos. Naqueles minutos de contemplação do canto de novas espécies de pássaros, a cabeça já estava a mil. Os eventos que se sucederam desde que chegamos em Belém eram combustível para o nosso projeto, cuja missão parecia ainda mais importante.

Poder divulgar – ainda que proporções diminutas nesse espaço virtual gigantesco – histórias, trabalhos e produtos como os de De Mendes é um verdadeiro privilégio do qual nos honramos muito.

Depois de agradecer as oportunidades que a vida tem nos oferecido, pulamos da cama com aquela vontade de conhecer, aprender e explorar nossos sentidos.

De Mendes já estava de pé, ou melhor, sentado em sua mesa de escritório, pesquisando sobre os flavors do chocolate, ainda intrigado com o sabor terroso encontrado por Vinicicus na degustação dos chocolates feita no dia anterior.

Dali a conversa já enveredou para o chocolate mais uma vez…e que delícia é falar sobre esse assunto! O Indiana Jones do Cacau, como é conhecido De Mendes, não hesita em discutir acerca do chocolate, nem de comer uma boa quantidade dele logo no café da manhã.

                                                                   Nos despedindo do Indiana Jones do cacau

Sete horas. Era hora de deixar a Comunidade de Chicano e voltar à capital. Era dia de realizar um dos desejos mais externalizados por Vinicius nos últimos tempos: acompanhar o abate de um porco e a produção de todos os derivados dos miúdos e da carne suína.

[Sabemos que nos nossos dias esse é um assunto delicado. Delicado porque envolve opiniões divergentes e por isso mesmo nos faz parar para refletir (recorde toda discussão que ocorreu quando Rodrigo Hilbert mostrou o abate de um cordeiro em seu programa de TV).

E nessa reflexão queremos dizer que o movimento ovolactovegetariano tem nosso total respeito. Principalmente porque ele leva a pensar sobre o alimento como algo além da mera sobrevivência humana. Inevitavelmente ele acaba dando mais atenção ao que colocamos à mesa, atribuindo valor ao que é orgânico, mais saudável e, via de regra, mais saboroso. Isso é excelente!

Por outro lado, entendemos também que “matar para comer” – e aqui nos referimos a um ato simplista, sem envolver outros aspectos relacionados à poluição, maus tratos ou a ganância do mundo capitalista – tem uma importância singular não só no desenvolvimento do que hoje chamamos de gastronomia, mas na própria evolução da humanidade.

A história dos povos, especialmente do povo brasileiro cujas nuances estamos descobrindo um pouco mais nessa etapa do projeto, mostra que o aqui e agora é indissociável do ato de matar para comer.

É da carne de caça que o pantaneiro sobrevive; são o porco, o gado e o frango que mantém vivas tradições seculares no interior de Minas Gerais e Goiás; são os frutos do mar que levam sustento a milhares de famílias no litoral; é o churrasco que aproxima as pessoas no sul do Brasil.

É claro que isso não quer dizer que as coisas não possam mudar e o mundo possa ir em outra direção. Absolutamente. Mas nosso projeto tem a missão de conhecer a cultura através dos alimentos e aí, caro amigo leitor, olhar pra trás e vivenciar de perto o “matar pra comer” faz parte do nosso caminho em busca pelo conhecimento.

Não há como saber para onde estamos indo ou qual caminhos devemos tomar sem saber quem fomos ontem e quem somos hoje. Daqui a três anos, quando nossa experiência chegar ao fim, poderemos falar mais sobre o amanhã.]

Dito isso, podemos dizer que a experiência foi muito rica (por várias razões).

Chegamos a casa dos tios da Chef Ilca, esposa de Paulo Anijar, antes das nove da manhã. Antes mesmo dos chefs e…do porco.

Adelmo e Hilda nos convidaram a entrar e em poucos minutos de conversa já nos serviram um cafezinho. Alguns minutos a mais trouxeram pupunha que haviam colocado para cozinhar assim que manifestamos nosso interesse em saber que gosto tinha esse fruto da palmeira. A gentileza nos permitiu conhecer um dos sabores da Amazônia de que mais gostamos: olhando parece uma abóbora, meio alaranjada. Na boca, a pupunha nos lembrou uma castanha portuguesa. Surpreendente.

                                                                                            Pupunha cozinha 

Não demorou muito e o leitão chegou. Rita, sogra de Paulo, foi a encarregada de trazê-lo. Vinicius, Adelmo e um senhor que passava pela rua naquele momento levaram animal de 70 kg para ao local onde seria abatido. Aí foi só aguardar a chegada de Paulo para os trabalhos iniciarem.

Assim como o Vinicius, Paulo nunca havia presenciado o ritual, o que tornava tudo mais experimental e até mais interessante. Foram mais de seis horas de trabalho entre o abate, a remoção do couro e pêlos, a retida dos órgãos, o destrinchar da carne, a limpeza do local.

Assim que saiam os primeiros cortes de carne, Hilda já providenciava o tempero e o preparo. Alguns foram feitos na churrasqueira, outros no forno e alguns na panela.

Vinicius separou o intestino para preparar as tripas que receberam a carne para fazer linguiça. Adelmo destrinchava as partes maiores do porco. Rita se encarregou de fazer o fígado e lavar o estômago para rechear com carne. Paulo preparou a parte da qual foi feita um carré. Vinicius e Paulo também se encarregaram da cabeça, que foi cozida na água.

Muitas partes foram reservadas para congelar e preparar noutro dia. Mas tudo, ou 99% do animal foi aproveitado.

Matar, limpar, destrinchar, preparar, comer.

E quando a ficha havia caído, estávamos lá, sentados em volta da mesa, compartilhando um momento único na casa de uma família paraense super acolhedora e muito envolvida com a gastronomia.

Já dissemos por aqui, mas vale lembrar. Paulo Anijar e a esposa, Ilca, são chefs e proprietários do restaurante Santa Chicória em Belém do Pará e fazem com os peixes e frutas típicas do estado pratos de dar água na boca. Rita, mãe de Ilca, também trabalha no restaurante. Hilda vende quentinhas e prepara bolos e tortas também por encomenda com muito capricho. Vimos ela preparando algumas de sua comidinhas enquanto todo aquele movimento acontecia na sua casa. Provamos, inclusive, a maniçoba e o baião de dois que ela preparou.

A maniçoba (já falamos dela por aqui) é o prato feito com a maniva, a folha da mandioca braba, que precisa ficar dias cozinhando para que saia todo o cianeto e a deixe bem macia.

O baião de dois, diferente do que provamos no Nordeste, não é feito com feijão verde, mas o feijão marronzinho mesmo, tradicional. E não leva queijo coalho. O tempero é mais leve. Leva o cheiro verde deles, chicória e cebolinha e o gosto fica bem mais leve que o típico do Nordeste.

E assim vamos descobrindo os sabores de nosso Brasil. As diferenças culturais tornam tudo mais bonito, mais rico, mais curioso e interessante.

Já era tarde quando nos despedimos da família de Paulo e partimos para o posto de combustíveis já na saída da cidade para passarmos a noite. Adelmo e Hilda nos ofereceram pousada, mas não havia onde estacionarmos nosso carro/casa e pelos relatos de falta de segurança nas proximidades, resolvemos não arriscar deixá-lo na rua.

Chegamos bem cansados e tudo que fizemos foi tomar um banho, abrir nossa cama e descansar. No dia seguinte teríamos muitas horas de estrada pra enfrentar.

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